A sala é escura, o som é potente - não só em termos de volume, mas do poder das palavras que saem da projeção de uma boca na parede. A voz é conhecida, especialmente por brasileiros que assistiram a novelas e peças de teatro nas últimas três décadas. É da atriz Bárbara Paz que não está ali como uma personagem. É a verdadeira Bárbara, sem filtros. É um ser humano que usou a arte como curativo de cicatrizes do corpo e da alma. “É um trabalho sobre cura. Sobre as feridas, sobre os buracos, não só os meus, mas de todas as pessoas”, diz ao DN. A exposição Auto-acusação foi criada por Bárbara como forma de lidar com um trauma que a acompanha há décadas. Aos 17 anos, quando começava a carreira como modelo, sofreu um acidente de carro. As cicatrizes ficaram, principalmente no rosto. A maquilhagem tornou-se uma grande amiga. O tempo passou e, hoje, vê o passado de maneira diferente. “Essa exposição é sobre cura. A arte existe porque a vida não basta”, relata..O desejo de criar algo a partir da sua não é novo. “Eu sempre quis fazer algo, um filme, um livro ou uma exposição sobre o que aconteceu, mas ainda não era a hora”, revela. De acordo com a brasileira, hoje mais dedicada à realização de filmes, a maturidade ajudou a tornar esse desejo numa realidade, apesar de ter hesitado no início. “Eu entrei em crise uns dias antes da abertura. Uma amiga me falou algo que não esqueço. Que a exposição era por mim, que eu fiz isso por mim, mesmo que desse errado. E foi um sucesso desde a primeira vez, foi muito legal”, relembra..O lançamento de Auto-acusação foi em São Paulo e depois Rio de Janeiro. A primeira paragem internacional é Lisboa, na Appleton. “É muito especial apresentar num país que amo, que é Portugal, cruzamos os mares, mas é como se fosse a nossa gente”, reflete. O público vê na exibição um conjunto de arte contemporânea de várias formas: fotos, como uma imagem de Bárbara agarrada a um saco de soro - também encontrado sob forma de dezenas de bolsas penduradas na parede, com a inscrição “cicatriz”. O líquido é verdadeiro. Outro objeto é um pequeno frasco repleto de cacos de vidro. Não são cacos comuns: saíram diretamente do corpo de Bárbara. “Eu fiquei anos tirando os pedaços e chorando vidro, às vezes até parecia engraçado”, conta..Exposição tem entrada livre.Reinaldo Rodrigues/Global Imagens | REINALDO RODRIGUES.Os cacos de vidro estão em destaque na exibição. Num canto iluminado estão 800 quilos de pó de vidro e uma cadeira. É ali que Bárbara realiza uma poderosa performance repleta de desafios. O primeiro é de não se cortar ao pôr os pés descalços nas partículas cortantes. O segundo desafio é olhar-se no espelho, algo que evitou durante anos por conta das cicatrizes deixadas pelo acidente. “Antes eu tinha muito’ gatilho’ em me olhar no espelho [revivia o trauma], espelho grande ainda tenho. Essa apresentação é uma forma de me curar, de me olhar, de não me cortar, de confrontar e isso me ajuda”, explica.As obras foram trazidas do Brasil, com exceção dos 800 quilos de vidro em pó, arranjados em Portugal, o que exigiu um trabalho logístico e de organização. Com o sucesso em Lisboa, Bárbara já faz planos para levar Auto-acusação para outras cidades portuguesas, como Porto e Coimbra, além de outros países europeus. Cá, a exposição está aberta até quinta-feira, das 14h às 19h, sempre com a presença da artista. .Um mundo de filtros .Perfomance retrata a relação de Bárbara com o espelho.Reinaldo Rodrigues/Global Imagens.Bárbara reflete que a exposição também dialoga com um tema contemporâneo: o uso excessivo de filtros das redes sociais, para esconder quem realmente são. “Isso aqui também é sobre a tiragem de filtros. A gente pode usar na medida. A gente pode experimentar as bebidas na medida. Agora os filtros são a mesma coisa, mas vira um vício, é uma loucura desenfreada, as pessoas não se reconhecem mais como são”, pontua.Prestes a completar 50 anos, Bárbara diz que o trabalho também é um convite para nos olharmos sem filtros. “Vamos olhar para dentro também. Vamos olhar para a real”, convida a atriz. Sobre a pressão estética que a sociedade impõe nas mulheres, conta que está a encontrar o seu caminho. “O envelhecer, ele é sábio, o tempo é sábio, mas é difícil para mulher principalmente, para o homem é sempre muito mais fácil. Eu sempre fui uma pessoa muito bem resolvida, e sou ainda, mas assim, agora acontece a fase das hormonas, de envelhecer”, avalia.Mesmo com as marcas que naturalmente a idade traz, diz não ter dúvida de preferir a Bárbara de hoje, e não a do passado. “A gente quer tantas coisas quando a gente é jovem, né? A gente quer tanto, tanto, tanto, tanta coisa. É, e aí o mar vai acalmando. Depois dos 30, vai indo, aí vai acalmando, aí você já vai ser seletivo, já sabe o que você não quer, é bom. O tempo traz muita coisa positiva”, argumenta. .A solidão humana .Com uma sólida carreira no teatro e televisão, Bárbara tem vindo a dedicar-se à realização de filmes. Em Lisboa, também apresentou Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou. O documentário retratou os últimos momentos do marido, o célebre cineasta argentino Hector Babenco, falecido em 2016. O filme recebeu o Prémio Melhor Documentário Venice Classics no Festival de Veneza em 2019, além de ter sido indicado para representar o Brasil nos Óscares 2020. Agora, a realizadora está a trabalhar num próximo filme que vai falar sobre a solidão. Este, é um dos tópicos que mais a interessa. “Os vazios, os buracos, a forma como tentamos suprir enquanto seres humanos”. Neste e noutros trabalhos, Bárbara garante que quer ter Portugal sempre na agenda..amanda.lima@globalmediagroup.pt