Nasceu uma estrela.
Nasceu uma estrela.

"Assassino Profissional". A explosão Glen Powell

Richard Linklater regressa à grande forma com uma comédia em jeito de thriller, a servir de plataforma de revelação para um ator que ainda não havia desfrutado do seu momento. ' 'Assassino Profissional' é cinema espantosamente profissional.
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"Quem é Glen Powell?”, pergunta legítima do leitor. Por certo, ninguém que tenha impressionado até agora, à exceção do tronco nu atlético numa partida de futebol americano à beira-mar em Top Gun: Maverick. Um ator que se perdia de vista nos elencos - para além do blockbuster de Tom Cruise, entra em Todos Querem o Mesmo, de Richard Linklater, mas de resto o seu currículo é uma mistura de comédias românticas, televisão e produções mais ou menos anónimas -, e de repente, ei-lo a comandar o novo thriller bem-humorado do dito Linklater, com uma interpretação que, pela riqueza inesperada, ficará no balanço do ano como uma grande descoberta. Do mais seguro, hábil, articulado e sexy que se viu pela lente do realizador texano. E assim, talvez faça algum sentido que nunca tenhamos dado pelo indivíduo: neste Assassino Profissional, Powell é um mestre do disfarce, capaz de existir dentro do esquema de realidade mental que assume para as suas personagens. Em suma, alguém cuja arte camaleónica pode fazê-lo “passar despercebido”, nos termos necessários. 

Por mais extravagante que pareça, a história do protagonista tem um fundo de verdade: Gary Johnson foi um colaborador da polícia de Houston, Texas, que se especializou em disfarces e diferentes identidades para passar por assassino a soldo, levando à incriminação de quem marcava encontro com ele para finalizar o acordo e pagar o serviço (tudo feito sob escuta, de forma a apanhar os supostos clientes em flagrante delito). E é assim que vamos ver Glen Powell a brilhar, na pele de um simpático professor de filosofia de Nova Orleães que, como qualquer nerd universitário (ou não), conduz um Honda Civic, vive com dois gatos e gosta de observar pássaros... Isto quando não está a fazer perguntas interessantes aos alunos ou, precisamente, a dar uma mãozinha em operações policiais. 

No início de Hit Man, é esta versão pacata que temos do homem. Mas quando Gary é chamado a substituir um polícia infiltrado que fez asneira, o seu nível de desempenho e improvisação revelam-se de tal maneira que não restam dúvidas sobre o momento “nasceu uma estrela!”. A partir daí, ninguém o pára - ou melhor, a ocasião surgirá em que uma bela cliente (perfeita Adria Arjona) lhe pede para matar o marido abusivo, e ele, deixando-se levar pela química do instante, consegue convencê-la a desistir do pedido e usar o dinheiro na sua própria independência... Que é como quem diz: o romance entre os dois torna-se inevitável e perigoso, num contexto profissional delicado (porque ele mantém a máscara sedutora do assassino), e com contornos extremamente afrodisíacos.   

Diversão com cérebro

Do princípio ao fim, Assassino Profissional prima pela tónica inteligente que vem da escrita (argumento coassinado por Linklater e o próprio Glen Powell) e passa para o corte das cenas, sempre no ritmo certo, sempre trabalhadas como um músculo de comédia bem definida. Na verdade, há muito tempo que o realizador de Antes do Amanhecer não alcançava esta nota de plenitude no seu cinema mais “ligeiro”, de que a anterior tentativa, Onde Estás, Bernadette? (2019), com Cate Blanchett, será um exemplo francamente menor. 

Em Assassino Profissional a diversão é concebida ao detalhe, há uma garantia constante de que o registo não perde as suas coordenadas, e sente-se quase um toque de génio na forma como Linklater e Powell elaboram a personagem, dando-lhe mesmo um fundamento intelectual. Ou seja, Gary Johnson não faz o que faz apenas para animar os seus dias solitários. Há um interesse concreto no estudo do comportamento humano que dá sentido à ação e amplifica o jogo existencial. Daí que as cenas de aula, em que ele coloca questões aos alunos sobre o quanto nos conhecemos a nós próprios ou se se pode considerar algo como um “eu” irredutível, sejam muito mais do que apontamentos acessórios - as reflexões sobre a identidade estão espalhadas por todo o filme, sem que o pendor filosófico perturbe o ângulo soalheiro, leve e ultra prazeroso. 

Acima de tudo, insisto, ponha-se os olhos em Glen Powell e no ar que dá de ser um talento inato, passando facilmente do absurdo à irmãos Coen para o perfil do homem sorridente sem tempero, numa performance múltipla que cumpre a força da premissa. O filme veste, aliás, uma agilidade muito semelhante à do ator, que também consegue remeter para algo muito “clássico” do cinema americano - pensemos na referência do film noir -, enquanto circula sem travões pela linha da brincadeira revigorante o tempo todo, sendo imprevisível quando tem de ser. 

Numa altura em que o género da comédia tende a confundir-se com ficção pouco nobre, dessa que estreia com regularidade e se esquece no dia seguinte, a proposta brilhante de Linklater vem honrar uma tradição hollywoodesca que nada tem que ver com o mero exercício de estilo ou revivalismo vazio. Pode até dizer-se que a questão do estilo aqui é orgânica e solta. Responde a uma ideia de pacto entre ator(es) e argumento, e à cláusula do puro deleite. Razões pelas quais apetece usar despudoradamente um termo publicitário: imperdível. 

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