Cultivando as boas memórias cinéfilas, o mercado cinematográfico continua a valorizar as reposições de títulos mais ou menos “antigos”. Acontece agora com o lançamento, pela Nitrato Filmes, da cópia restaurada de As Virgens Suicidas. Foi o filme que revelou ao mundo o nome de Sofia Coppola, não exatamente como filha de Francis Ford Coppola, antes como uma autora por direito próprio - seja como for, não esqueçamos que, através da American Zoetrope, o pai surge aqui com funções de produtor..A sua revelação ocorreu no mês de maio de 1999, no Festival de Cannes, integrando a Quinzena dos Realizadores. Adaptando o romance homónimo de Jeffrey Eugenides (disponível em tradução portuguesa com chancela Dom Quixote, 2017), Sofia Coppola estreava-se na longa-metragem na dupla condição de argumentista e realizadora. O que, bem entendido, está longe de ser secundário para a subtil textura narrativa de As Virgens Suicidas, explorando as convulsões insólitas e perturbantes de uma história que nos remete, ponto por ponto, para as regras clássicas do melodrama e, nessa medida, para as narrativas da idade de ouro de Hollywood..Se podemos definir a escrita melodramática como uma arte de expor as evidências e os segredos do espaço familiar, no caso de As Virgens Suicidas será preciso acrescentar que isso acontece através do reforço factual e simbólico de uma outra componente do género. A saber: a fronteira volátil que separa (ou une) a carnalidade do desejo de viver e o silêncio violento que a morte instala nas existências humanas..Por mais que queiramos preservar a margem de descoberta do potencial espectador do filme, a crueza do título (do livro e do filme) não permite ocultar a pulsão trágica da história que nos é contada. Descobrimos, assim, as cinco irmãs de uma típica família americana (de apelido Lisbon!), em meados da década de 1970, algures nos subúrbios da cidade de Grosse Pointe, no estado do Michigan. Com uns pais super-protetores, de inspiração católica, as irmãs Lisbon, de idades entre os 13 e os 17 anos, vivem uma existência em que a pureza moral se vai confundindo com um estranho assombramento. Tudo começa com os problemas que afetam a irmã mais nova e a sua resistência a conviver com os outros: durante uma festa organizada em sua honra, ela escapa-se para o seu quarto, lançando-se da janela para a morte, trespassada por uma ponta metálica da cerca do jardim….Tendo em conta as rotinas medíocres de muitos filmes de terror da atualidade, convém sublinhar o paradoxo de As Virgens Suicidas: por um lado, estamos muito longe desse género de produtos; por outro lado, isso não impede que Sofia Coppola crie um clima de envolvente inquietação em que a harmonia dos lugares e das cores está ameaçada por uma indomável pulsão de morte - a esse propósito, observemos a notável direção fotográfica de Edward Lachman, a par da estranheza eletrónica da música do duo francês Air..Em tom feminino.Passados 25 anos, As Virgens Suicidas é um objeto que continua a distinguir-se pela delicadeza com que aplica o cinema como bisturi das aparências da realidade, de alguma maneira antecipando outros momentos emblemáticos da trajetória criativa de Sofia Coppola - lembremos os ecos de tudo isso na sua segunda longa-metragem, Lost in Translation/O Amor É um Lugar Estranho (2003), ainda que, neste caso, com a bênção das virtudes clássicas do romantismo..Nada disso é estranho ao misto de dedicação e paciência com que são dirigidos os intérpretes mais jovens de As Virgens Suicidas, com inevitável destaque para Kirsten Dunst, que se tornaria uma presença fulcral de vários filmes de Sofia Coppola, protagonizando, por exemplo, Marie Antoinette (2006). Em tempos de tantos clichés feministas, este continua a ser um universo rebelde, metódico à sua maneira, celebrando os segredos do feminino.