Todos conhecemos a história dos Beatles depois do fim dos Beatles... Ou talvez não. Revelado no Festival de Veneza de 2024, agora lançado entre nós com chancela da Nitrato Filmes, One to One: John & Yoko, de Kevin Macdonald e Sam Rice-Edwards, é um documentário que nos recorda que a mitologia em torno dos quatro de Liverpool nem sempre nos ajuda a conhecer os respectivos trajectos, sobretudo depois do desmantelamento da banda, sinalizado por esse álbum “póstumo” que é Let it Be, lançado em maio de 1970.Trata-se, neste caso, de revisitar John Lennon, Yoko Ono e alguns capítulos das suas aventuras americanas, vividas ao longo de uma década em Nova Iorque. A história canónica recorda-nos que o casal elegeu o lendário Dakota (ou Dakota Apartments), junto ao Central Park, como residência — lembrando também que foi na entrada desse edifício, na noite de 8 de dezembro de 1980, que Lennon, tinha 40 anos, foi assassinado por Mark David Chapman. Na verdade, depois da saída de Inglaterra, antes da mudança para o Dakota em 1973, John e Yoko começaram por habitar um apartamento da Bank Street, em Greenwich Village, precisamente o período evocado pelo filme.A imagem de marca desse período, misto de lirismo e ironia, foi criada pelo próprio Lennon, garantindo que para ele e Yoko a multiplicidade de canais televisivos dos EUA foi uma descoberta fascinante. Mais do que isso: um novo modo de vida. De tal modo que encomendou um gigantesco leito conjugal, uma espécie de “sala de estar” com muitas almofadas, onde passavam os dias a olhar para o pequeno ecrã, estrategicamente colocado aos pés da cama. O documentário, embora organizado a partir de uma invulgar coleção de materiais de arquivo (muitos inéditos ou pouco divulgados), propõe mesmo uma reconstituição do quarto de John e Yoko, um espaço íntimo organizado a partir do televisor como ponto de fuga do cenário.Resta dizer que tais detalhes estão longe de esgotar aquilo que aconteceu. Tínhamos, aliás, um sinal disso mesmo no álbum Live in New York City, edição póstuma de 1986 com o registo de dois concertos dados por Lennon (com a Plastic Ono Band) no Madison Square Garden, a 30 de agosto de 1972. Com a designação de “One to One”, foi um evento para angariar fundos para a Willowbrook State School de Nova Iorque, instituição de ensino especializado para crianças deficientes.One to One: John & Yoko não “encaixa” no modelo do filme-concerto, sendo antes um painel dos muitos contrastes da América de 1972, pontuado por algumas das canções interpretadas no Madison Square Garden, com enérgicas performances de Yoko e Lennon (incluindo essa arrepiante confissão que é Mother). O ziguezague que assim se produz é tanto mais pertinente quanto, através ou para lá das canções, Lennon foi nesse período uma figura marcante de uma certa “contracultura” em que pontificavam figuras como o poeta Allen Ginsberg e o activista Jerry Rubin (ambos recordados em momentos emblemáticos).. Daí que este seja um filme esclarecedor, podemos mesmo dizer didáctico, sobre um contexto de muitas convulsões sociais e políticas, com inevitável destaque para o prolongamento da guerra do Vietname. Entre os hinos pacifistas da época está Give Peace of Chance, uma das memórias do concerto “One to One” evocada no filme.Tragédia e “entertainment”Kevin Macdonald é um cineasta escocês (nascido em Glasgow, em 1967) cujo título mais conhecido será O Último Rei da Escócia (2006), um retrato de Idi Amin, o ditador que foi presidente do Uganda no período 1971-79 — o papel principal valeu a Forest Whitaker o Óscar de melhor actor.No caso de One to One: John & Yoko não há nada de casual no facto de Macdonald partilhar a assinatura da realização com Sam Rice-Edwards, responsável pela montagem do documentário. Estamos, de facto, perante um trabalho exemplar de conjugação de imagens e referências, não desvalorizando nenhum dos elementos enredados nos factos e no imaginário de uma época tão complexa quanto contraditória. Sublinhe-se, por isso, o cruzamento de eventos trágicos, como a revolta dos reclusos da prisão de Attica, em 1971, com as imagens do pequeno ecrã, incluindo as que alimentavam formas fúteis de “entertainment”. O mundo é feito da contundência, por vezes da irrisão, de tais contrastes — ontem como hoje.