Aos domingos de manhã, quase religiosamente, Arthur Larrue reúne-se com amigos para jogar xadrez nos jardins do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. É nesse mesmo espaço que num dia de semana soalheiro conversamos sobre o seu romance A Diagonal Alekhine, editado em abril pela Quetzal Editores, baseado na vida de Alexander Alekhine - o russo naturalizado francês, considerado um dos maiores jogadores de xadrez de sempre, e que escreveu artigos antissemitas durante a II Guerra Mundial. Alekhine morreu em 1946, num hotel no Estoril, e a sua morte continua envolta em algum mistério. É sobre a sua vida, ambígua, que o escritor francês se interessou e nos dá a conhecer a personagem. Especialista em cultura russa (e com mais dois livros publicados, Orlov la Nuit e Partir en Guerre, ainda sem tradução para português), a guerra da Ucrânia não podia ficar de fora da conversa com o parisiense. Nem a vinda de milhares de franceses para Portugal para viver, tal como ele. Mais do que sobre xadrez, a conversa foi sobre a ambiguidade e as escolhas do ser humano, num diálogo aberto, sem xeque-mate..Como surgiu a ideia de escrever um romance sobre Alexander Alekhine?.Vivi na Rússia, em São Petersburgo, e ao jogar xadrez com amigos descobri a figura de Alekhine e também a sua geração, que talvez tenha sido a última de jogadores de xadrez artistas. Eram jogadores que não tinham equipas de apoio. Isso fazia com que, nessa altura, o xadrez não fosse um desporto, mas sim uma arte, uma experiência mais humana. Mas ainda antes de Alekhine foi outro jogador que me despertou a atenção, o [Rudolf] Spielmann. Mas, conforme fui investigando, o Alekhine foi ficando predominante, sobretudo porque tenho muita admiração por figuras com ambiguidade, como [Martin] Heidegger na filosofia ou [Louis-Ferdinand] Céline na literatura francesa. Ou seja, a mistura entre a genialidade e o erro político. Esta ambivalência foi enorme em Alekhine, que foi um dos maiores e mais importantes jogadores da história milenar do xadrez e, ao mesmo tempo, o autor de artigos estúpidos antissemitas e nazis. Isso é um "presente" para um escritor e permitiu escrever um romance no qual a personagem nunca está estabilizada..Quanto tempo levou a escrever o livro?.As várias pesquisas, não contínuas, levaram seis anos, juntamente com diversas leituras e a prática de xadrez. Existiram três leituras muito importantes para este livro. Xeque-Mate no Estoril. A morte de Alexandre Alekhine, de Dagoberto Markl (1939-2010), ele que também foi historiador aqui no Museu Nacional de Arte Antiga, foi a maior inspiração do meu romance. Também foi importante a leitura do livro de um historiador espanhol, Pablo Moran, A. Alekhine: A agonia de um génio, sobre os últimos anos de Alekhine. Ambos são livros de xadrez com análise de jogadas e elementos biográficos. Ainda houve a leitura muito importante de um blogue dedicado à história do xadrez, da autoria do historiador inglês Edward Winter. Durante seis anos foi ler, ler e reler e jogar xadrez. Depois o processo de escrita foi bastante rápido, durou cerca de três meses e meio durante um verão aqui em Lisboa..Quando começou o seu gosto por jogar xadrez?.Desde muito jovem, com sete, oito anos, através de um amigo do meu pai. Depois comecei a jogar a sério quando vivi na Rússia. Jogava com um amigo que é crítico de cinema e que, entretanto, teve de fugir de lá. Todas as semanas jogávamos. Interessa-me a densidade intelectual considerável do jogo. Todos os desportos do mundo reunidos não produzem tantos livros como já o fez o xadrez. Cada revolução intelectual tem a sua aplicação no jogo e no poder metafórico e poético do xadrez. É como uma grande metáfora dos humanos e da História..Citaçãocitacao"Interessa-me a densidade intelectual considerável do jogo. Todos os desportos do mundo reunidos não produzem tantos livros como já fez o xadrez.".Esses jogadores-artistas já não existem. O xadrez mudou assim tanto?.Hoje quase que já não é o mesmo jogo. Vivemos na época do computador, desde que o computador é melhor do que o melhor jogador de xadrez do mundo. Ou seja, qualquer computador não dá qualquer chance ao [Magnus] Carlsen [n. r. ◘- o norueguês que é considerado o melhor jogador do mundo da atualidade]. Hoje em dia os jogadores trabalham com computadores, com preparadores, é quase uma ciência e um desporto de alta performance. Na altura do Alekhine o jogo era de uma expressão mais espontânea. Cada época tem o seu xadrez, e isso é interessante. Só para exemplificar, há uns meses fui entrevistado por um jornalista alemão, especialista em xadrez, e falámos sobre os melhores jogadores do mundo, entre eles um francês, o Maxime Vachier-Lagrave. O jornalista disse-me que ele nunca poderia ser campeão do mundo porque come muito. Estamos neste nível da alta competição. O Carlsen, por exemplo, tem dois cozinheiros e muitas pessoas a trabalhar para ele, inclusive um preparador físico. Já o Alekhine bebia e fumava o dia inteiro e estava sozinho a pensar as suas jogadas com uma energia dos seus demónios. Se pudéssemos ressuscitar o Alekhine e pô-lo a jogar contra o Carlsen, em teoria o Carlsen é melhor, mas... o xadrez é um jogo aberto, não há a jogada perfeita..É inevitável não haver uma comparação entre si, francês, que viveu na Rússia e que agora vive em Portugal, com o Alekhine, que era russo mas tinha nacionalidade francesa e que acaba os seus dias no Estoril... .Sim, a noção de exílio e de um certo olhar sobre a sociedade portuguesa. Um sentimento de ser estrangeiro e de devoção a uma arte, que no meu caso é a literatura. Claro que isso faz parte de uma espécie de relação de intimidade com a personagem. Mas isso observa-se mesmo com biógrafos de Hitler ou do pior do pior da História. O nosso trabalho é dar expressão a algo. Por isso posso dizer que tenho várias coisas em comum com o Alekhine. Fui duas vezes visitar o seu túmulo, num cemitério em Paris, em Montparnasse. A primeira vez foi para lhe dizer que ia escrever um romance sobre ele; na segunda vez perguntei-me se lhe devia deixar flores. É uma pergunta que está no livro. Decidi comprar uma flor barata, pequena, num pote. E como no seu túmulo há um tabuleiro de xadrez desenhado, coloquei a flor na casa Cf6, que é casa da sua defesa, a sua jogada famosa. Mas não foi um presente! Não escolho entre a admiração e a repulsa. Há as duas..Em 2009 vai viver para a Rússia, para São Petersburgo, para ensinar literatura francesa. Porquê?.A cultura russa, a língua, a literatura, a história... tenho todos os amores pela Rússia. Aliás, tinha, porque agora é mais complicado. A minha posição é complicada, a minha imaginação, o meu amor pela cultura daquele país... os meus livros são sobre a Rússia e agora, com a guerra na Ucrânia, perdi esse gosto. Perdi o prazer de falar russo, que é uma língua incrível. Perdi o meu país de sonho..Citaçãocitacao"A cultura russa, a língua, a literatura, a história... tenho todos os amores pela Rússia. Aliás, tinha, porque agora é mais complicado.".Quando foi viver para São Petersburgo, a sociedade russa era aquilo que estava à espera?.Foi um pouco melhor, no sentido que assisti a uma guerra interior. Antes da guerra exterior que estamos a viver agora e das guerras na Geórgia e Chechénia. Vi com os meus olhos a derrota da sociedade civil russa e da esperança muito ténue que seja o povo russo a gerir o seu destino, e não um grupo de tipos horríveis e sem limites..Mas a Rússia não teve sempre essa ideia de uma grande figura, um líder a mandar nos seus destinos, desde o tempo dos czares ao Partido Comunista? Ou esta é apenas uma visão ocidental?.O contrato social dos russos é bem estabelecido. O povo russo não decide nada e deixa um homem no Kremlin a criar medo aos russos e ao mundo. Não se mexe com a Rússia! Se és russo, não se mexe, porque a Rússia é uma espécie de figura que te pode apanhar a qualquer momento. E para o resto do mundo o mesmo. A esperança de vida dos russos é pior do que a da Coreia do Norte. A riqueza do país não vai para os russos, mas para as contas bancárias que estão em Londres. Nenhum bilionário russo tem o seu dinheiro na Rússia, porque por lá tudo pode acontecer. E esse contrato social nunca mudou. Agora, o povo russo tem responsabilidade sobre o que se está a passar. Passou-se o mesmo com os alemães na II Guerra Mundial. Moscovo tem sete milhões de pessoas e há manifestações contra a guerra da Ucrânia onde estão mil pessoas... Podemos explicar com história, sim, temos Ivan, o Terrível, por exemplo, mas a França teve o Luís XIV, Portugal teve Salazar, os alemães tiveram Hitler, mas evoluiu-se. A minha única esperança é de que a situação fique tão mal que algo irá acontecer. Isto porque a Rússia está a perder a face. Há meses que estão a tentar conquistar o Donbass, o que é ridículo. É uma derrota enorme. E isso os russos não gostam. E isso poderá ser a razão para mudar as coisas na Rússia, porque Putin está a falhar. Repare, os únicos governos russos que caíram foram o de Nicolau II, que falhou na I Guerra Mundial e na guerra com o Japão, o Kruschev, com a crise de mísseis em Cuba, e o Gorbachev, com a queda da URSS. Os russos não gostam deles - não pela sua eventual tirania, mas sim porque falharam..Então isso quer dizer que esta guerra ainda vai durar muito tempo?.Putin nunca vai reconhecer o erro. Por lá continuam a dizer que foram atacados, que os ucranianos são nazis e que o mundo é antirrusso. A única solução é uma revolução interna. O historiador russo Oleg Sokolov, que tem uma expressão muito bonita para falar do poder russo, diz que é "um poder pobre". Ninguém pode dizer que a Rússia não tem poder, porque tem! Mas toda a gente sabe que é uma merda..Sei que a determinado momento foi obrigado a sair da Rússia, curiosamente na mesma altura que publicou um dos seus livros ....Ninguém me disse que foi pelo livro, mas o meu visto foi bloqueado. Deram-me uma T-shirt e uma medalha da universidade onde trabalhava, disseram que tinha sido um gosto trabalhar comigo durante quatro anos... e vim-me embora. Mas sei que os russos também estão a sofrer, tenho muitos amigos lá e é um grande sofrimento..E quando resolve vir viver para Lisboa? Foi para seguir a multidão francesa que se mudou para Portugal?.Vim em 2016, um pouco antes da "multidão" de franceses. Felizmente, agora são os norte-americanos que estão a vir para Portugal, o que é bom, para que os franceses deixem de ser os maus da fita para os lisboetas. Os norte-americanos têm uma cultura capitalista pior que os franceses e assim os portugueses vão estar mais em paz com os franceses (risos). Saí de França com 23 anos e nunca mais voltei a viver lá. Depois da Rússia vivi em Marrocos, Itália, nos Açores e visitei Lisboa durante 12 dias e decidi ficar por cá. Gosto da luz, da língua, da vegetação..Como é ser escritor estrangeiro e viver em Lisboa?.É uma cidade em paz e que me deixa livre. Paris ou São Petersburgo são cidades que te apanham. Lisboa deixa-me tranquilo. Estamos a conversar aqui nos jardins do Museu Nacional de Arte Antiga e, contando connosco, estão aqui quatro pessoas. Em Paris, para além de haver mais gente, há uma grande pressão económica. Um jardim como este não podia funcionar assim em Paris, alguém teria que ganhar dinheiro com isto. A direção do museu teria certamente muita pressão para ganhar dinheiro com esta que é uma das vistas mais bonitas da cidade sobre o rio. Mas posso dizer também que Lisboa é hoje um local privilegiado porque foi esquecida durante muitos anos, ou bem guardada pelos portugueses. E isso faz com que Lisboa seja agora uma vítima das pessoas que chegam aqui com 10 anos de avanço e já sabem o que vai acontecer..A sua vivência cá, social e cultural, é fechada na comunidade francesa?.Não, e por uma simples razão: o privilégio de estar no estrangeiro é ser estrangeiro. Se vivo fora do meu país não é para viver no meu país. Não tenho o reflexo do comunitarismo, mas gosto de ter afinidade com a minha língua, é uma coisa social. Por exemplo, sou bom amigo da escritora Leila Slimani, que também vive em Lisboa, e gosto de estar com ela porque falamos francês e temos uma identificação com a língua. Estou a fazer esta entrevista em português, mas não é mesma coisa se a fizesse em francês, há uma certa subtileza que perco. Já saí de França há 15 anos, falo russo, português, inglês e um pouco de espanhol, mas parece que a língua francesa está a ficar um pouco esquecida e isso para um escritor é mau, preocupa-me. Claro, olho para o meu país, vejo os jornais, etc. Mas, pela primeira vez, sobretudo este ano, e depois de 15 anos fora, estou a ficar com nostalgia. Na minha cabeça já existe a ideia de regressar a França. Mas pode mudar, claro..Os portugueses e os franceses são muito diferentes?.Sim, há uma grande diferença. Diria que comparativamente aos portugueses os franceses têm uma "grande boca" e os portugueses são o oposto. Aliás, há uma espécie de orgulho nos portugueses em serem mais calmos, mas que não pode ser confundido com humildade. Contudo, questiona-me a situação destes dois povos. Paris tem 1,5 milhões de portugueses na região de Îlle de France e estes dois povos até hoje não tiveram uma grande relação. Se calhar por culpa de ambos, os franceses são snobs e os portugueses têm essa espécie de humildade, que não é, porque há um orgulho muito grande nos portugueses - se tocas nesse orgulho, pode ser o fim do mundo! Essa densidade é incrível e isso não se encontra em França. Mas diria que estou mais interessado em ver como vai decorrer este encontro entre os dois povos que temos atualmente, e gosto de ser parte disso. Trabalho com artistas portugueses, com a Fernanda Fragateiro, por exemplo, e tenho muitos amigos portugueses. Por isso acho que esse encontro entre os dois povos é muito interessante..E escritores portugueses, tem autores preferidos?.Sim, escrevi um conto sobre um poeta português do século XVIIque viveu no Brasil e que tem um nome incrível: Boca do Inferno. Foi expulso de Salvador da Baía por causa dos seus poemas satíricos e pornográficos e foi viver para Angola. Fiquei siderado por esta figura e tive de escrever sobre ele. Desde o momento em que escolhi ser escritor - tenho três romances e vários contos publicados - que não tenho uma admiração beata por outros escritores. Leio para escrever. Não sou um bom interlocutor para falar de Fernando Pessoa, por exemplo. O Proust e o Pessoa estão em locais a que não vou, são algo superior, mas posso aprender qualquer coisa com eles. Gostaria de fazer uma tradução de português para francês e aconselharam-me o Barão, do Branquinho da Fonseca, dos anos 30, que é um conto muito estranho. Estou a pesquisar, não para admirar mas para escrever..E já há ideias para o próximo livro?.Sim, tenho um bom título, que adoro, mas não vou dizer qual..filipe.gil@dn.pt