Eis uma evidência cruel: Robert Zemeckis, autor de uma das mais rentáveis “franchises” do moderno cinema americano — a trilogia Regresso ao Futuro (1985/1989/1990) — já não é um nome acarinhado pela máquina promocional de Hollywood. Aí está o seu novíssimo filme, Aqui (título original: Here), um dos diamantes deste ano cinematográfico, lançado sem qualquer empenho comercial, nem mesmo procurando valorizar o notável elenco liderado por uma estrela como Tom Hanks..Não tenhamos ilusões: o falhanço comercial de Aqui no mercado dos EUA transformou o filme num objecto descartável, na melhor (?) das hipóteses condenando-o a uma passagem breve pelas salas, seguida de uma existência “anónima” nas plataformas de “streaming”... É triste todo este desinvestimento (industrial & comercial), até porque, por perversa ironia, não é arriscado supor que Aqui vai ficar como um marco na história dos efeitos especiais..Estamos perante a adaptação da novela gráfica homónima de Richard McGuire (edição portuguesa: Cavalo de Ferro, 2024), obra que se poderá resumir como a história de uma sala: somos confrontados com o mesmo espaço (sempre com o mesmo enquadramento) e as vidas que o partilharam ao longo de séculos (milénios, em boa verdade). De tal modo que a “passagem” de uma época para outra se faz através de pequenas imagens que se sobrepõem às ilustrações anteriores, até gerarem uma nova imagem..Zemeckis transforma tudo isso num fascinante jogo de ecrãs. Dir-se-ia uma fábula familiar: a câmara ocupa sempre o mesmo lugar, com o espaço a transfigurar-se, dos tempos pré-históricos até à história moderna do casal interpretado por Tom Hanks e Robin Wright. Assistimos, assim, a episódios que, literalmente, se vão sobrepondo uns aos outros, num inventário de muitas memórias que nos faz sentir de forma estranhamente sensual a passagem do tempo... através do mesmo espaço.Quem viu o filme Timecode (2000), de Mike Figgis, lembrar-se-á que o realizador inglês propunha uma visão simultânea de quatro histórias (com o ecrã dividido em quatro partes), explorando a coincidência temporal das respectivas peripécias. No caso de Aqui, é o espaço que se mantém como uma espécie de eterna vinheta realista, sendo o tempo o factor que vai alterando de modo quase surreal as dinâmicas daquele espaço..Não é todos os dias que deparamos com um filme capaz de desafiar os códigos dominantes das narrativas cinematográficas, em particular as que descendem nas linguagens clássicas. Zemeckis fez um filme realmente experimental, recorrendo à mais sofisticada tecnologia para nos lembrar que um filme não é uma “reprodução” da vida, antes um território de transfiguração dessa vida. Atenção: para ver, se possível, num grande ecrã, antes que o aprisionem nos limites dos nossos televisores caseiros.