Com mais de cinquenta anos de carreira, o músico Rão Kyao decidiu prestar tributo à mensagem e figura de Mahatma Gandhi. O novo trabalho, Um Português Homenageia Gandhi, começou com um desafio do governo indiano para reinterpretar uma canção que Gandhi ouvia muito..Esse envolvimento levou Rão Kyao a redescobrir a figura e a criar a sua homenagem. Em conversa via Zoom, explica que não é um álbum de música indiana, mas sim um ponto de encontro na ligação entre Portugal e a Índia. Está a lançar um trabalho de homenagem a Mahatma Gandhi. Sabendo da sua ligação de há muito à música indiana, porquê fazê-lo agora? Há cerca de um ano, por ocasião dos 150 anos do nascimento do Mahatma Gandhi, o governo indiano lançou um desafio a 124 países para que um músico por país trabalhasse um tema que Gandhi ouvia muito, o Vaishnav Jan to Tene Kahiye. É um tema com uma mensagem espiritual de um autor do século XV que se tornou uma espécie de um hino para Gandhi. Em Portugal fui o selecionado, talvez pela minha ligação com a música indiana. Fizemos um arranjo em que tentei dar uma determinada característica que fosse distinta e aportuguesei o tema ao usar a guitarra portuguesa com uma certa cadência. A piada disto é que o primeiro-ministro indiano, Narenda Modi, manifestou nas redes sociais que gostou muito da minha interpretação. E isso tocou-me. E comecei a pesquisar e a ler ainda mais sobre Gandhi e decidi criar uma série de temas sobre as várias mensagens e alguns acontecimentos da sua vida. E daí nasceu o disco, que não é de música indiana mas tem em conta a ligação de Portugal com a Índia..Citaçãocitacao"O primeiro-ministro indiano, Narenda Modi, manifestou nas redes sociais que gostou muito da minha interpretação. E isso tocou-me.".E quanto tempo demorou a preparar este trabalho? Há todo um mistério envolvido no processo criativo, mas quando arranjei a bolha para fazer alguma coisa sobre Gandhi, o processo criativo despontou. Foi ao longo de dois meses que as ideias foram surgindo, depois disso comecei a trabalhar com os músicos. Aliás, apresentámos, no ano passado, um esboço do trabalho na Índia. E no verão fomos para estúdio.. Isto em plena pandemia da covid-19. De que forma afetou as gravações? Afetou de certa maneira. Mas a primeira condição para gravar em tempos de pandemia é fazê-lo num estúdio grande. Por isso gravámos em Torres Vedras num estúdio com espaço suficiente entre os músicos e que possibilitou tocarmos ao mesmo tempo. Não foi feito como uma manta de retalhos como muitos discos agora são feitos. Aliás, até deu a perceção de que o sexteto tocava ao vivo. E o ambiente foi muito bom.. Depois da apresentação do primeiro tema, o que se segue? O primeiro tema, Respeito pela Natureza, foi lançado no início de março, é uma homenagem à forte costela ecológica de Gandhi. Ele tinha um profundo sentido da proteção da natureza. E dentro de pouco tempo vamos apresentar a nossa versão de Vaishnav Jan to Tene Kahiye, a tal música/hino de que falei no início. E no final de abril, início de maio, o disco estará cá fora. Para lá do aspeto musical, temos a extraordinária presença do ensinamento de Gandhi, que nunca como agora é necessário. Sinto uma grande satisfação por estar a chamar a atenção para esta figura extraordinária..Como tem visto a forma como hoje em dia consumimos a música. Tendo em conta a essência e a particularidade do seu registo, acredita que, independentemente do formato - streaming, vinil -, o que interessa é chegar às pessoas? É uma resposta com dois lados. A procura é hoje extremamente fácil, temos acesso a tudo, o que é fantástico. Mas temo um pouco que as pessoas sejam manobradas pelo maioritário. Não existindo conhecimentos musicais bem afirmados, facilmente são influenciados pelos mais fortes - Estados Unidos e Reino Unido - , e isso torna mais difícil projetar certos e determinados tipos de música. Tenho pena de que esteja a provocar tribalização de certos géneros musicais. Este novo tipo de escuta da música [streaming], sendo muito diversificado, acaba por não permitir contacto com coisas diferentes. Mas, por outro lado é fantástico, temos acesso a tudo! Quem é hoje o seu público? Sempre tive essa curiosidade... Mas sempre me disseram que é muito heterogéneo, e isso alegra-me. A música é para juntar, não para separar. Lá está, por isso digo que não gosto da tribalização da música. É uma vitória se conseguir puxar para a minha música alguém que não me ouvia. Mas respondendo diretamente: não consigo indicar quem é o meu tipo de público..Mas, por exemplo, se tivesse de explicar a um adolescente como é a sua música, isto antes de ele a escutar, o que lhe poderia dizer? É a musica de um português do mundo. Chego à conclusão de que os meus heróis, os músicos de cabeceira, como costumo dizer, são sempre alguém que tem a combinação de duas coisas: gente que tem a música bem alicerçada numa certa e determinada tradição, mas ao mesmo tempo sempre a tentar ver novos ângulos. O completar dessas duas características é que faz o grande músico, para além da qualidade da sua música e a profundidade da sua mensagem, etc. Quando digo um português do mundo é porque apresentou uma determinada raiz na minha música, mas sempre a ir buscar coisas novas, sobretudo na ligação de Portugal com o mundo, com a Índia, com Macau com o Brasil. Disse que tinha músicos de cabeceira. O que anda a ouvir? São os meus heróis. Músicos como o Joe Coltrane, Dexter Gordon. Ou se vou para a música indiana oiço o Bismillah Khan, entre outros, ou alguns músicos chineses, ou ainda, por exemplo, Sivuca, o grande acordeonista brasileiro. E oiço muito Cecilia Bartoli, uma meio-soprano, que adoro. São grandes músicos com quem aprendemos muito..E com toda a situação da pandemia, presumo que tenha saudades dos palcos... Não vamos por aí... falar nisso vai dar em comoção [risos]. Nesta altura tenho ido tocar para o campo, para os pássaros, porque gosto muito de os ouvir e desse isolamento. Mas faz-me falta aquilo que a música provoca no momento. A reação, a sala, a maneira como o público reage... tudo isso faz muita falta. Com mais de 50 anos de carreira, se tivesse de fazer um resumo do que tem sido até agora, como o faria? Penso que a carreira deve ser medida no dia-a-dia e no sentido em que tem de haver interesse em fazer música. Acordo todos os dias a pensar como vou tocar isto ou pegar naquilo. Acredito também que o músico necessita de um tipo de solidão, de uma forma de fazer música, para depois transmitir o que fez às outras pessoas. No meu caso, o amor de pegar numa flauta e tocar e depois transmitir isso às pessoas. A minha carreira é isso.. filipe.gil@dn.pt
Com mais de cinquenta anos de carreira, o músico Rão Kyao decidiu prestar tributo à mensagem e figura de Mahatma Gandhi. O novo trabalho, Um Português Homenageia Gandhi, começou com um desafio do governo indiano para reinterpretar uma canção que Gandhi ouvia muito..Esse envolvimento levou Rão Kyao a redescobrir a figura e a criar a sua homenagem. Em conversa via Zoom, explica que não é um álbum de música indiana, mas sim um ponto de encontro na ligação entre Portugal e a Índia. Está a lançar um trabalho de homenagem a Mahatma Gandhi. Sabendo da sua ligação de há muito à música indiana, porquê fazê-lo agora? Há cerca de um ano, por ocasião dos 150 anos do nascimento do Mahatma Gandhi, o governo indiano lançou um desafio a 124 países para que um músico por país trabalhasse um tema que Gandhi ouvia muito, o Vaishnav Jan to Tene Kahiye. É um tema com uma mensagem espiritual de um autor do século XV que se tornou uma espécie de um hino para Gandhi. Em Portugal fui o selecionado, talvez pela minha ligação com a música indiana. Fizemos um arranjo em que tentei dar uma determinada característica que fosse distinta e aportuguesei o tema ao usar a guitarra portuguesa com uma certa cadência. A piada disto é que o primeiro-ministro indiano, Narenda Modi, manifestou nas redes sociais que gostou muito da minha interpretação. E isso tocou-me. E comecei a pesquisar e a ler ainda mais sobre Gandhi e decidi criar uma série de temas sobre as várias mensagens e alguns acontecimentos da sua vida. E daí nasceu o disco, que não é de música indiana mas tem em conta a ligação de Portugal com a Índia..Citaçãocitacao"O primeiro-ministro indiano, Narenda Modi, manifestou nas redes sociais que gostou muito da minha interpretação. E isso tocou-me.".E quanto tempo demorou a preparar este trabalho? Há todo um mistério envolvido no processo criativo, mas quando arranjei a bolha para fazer alguma coisa sobre Gandhi, o processo criativo despontou. Foi ao longo de dois meses que as ideias foram surgindo, depois disso comecei a trabalhar com os músicos. Aliás, apresentámos, no ano passado, um esboço do trabalho na Índia. E no verão fomos para estúdio.. Isto em plena pandemia da covid-19. De que forma afetou as gravações? Afetou de certa maneira. Mas a primeira condição para gravar em tempos de pandemia é fazê-lo num estúdio grande. Por isso gravámos em Torres Vedras num estúdio com espaço suficiente entre os músicos e que possibilitou tocarmos ao mesmo tempo. Não foi feito como uma manta de retalhos como muitos discos agora são feitos. Aliás, até deu a perceção de que o sexteto tocava ao vivo. E o ambiente foi muito bom.. Depois da apresentação do primeiro tema, o que se segue? O primeiro tema, Respeito pela Natureza, foi lançado no início de março, é uma homenagem à forte costela ecológica de Gandhi. Ele tinha um profundo sentido da proteção da natureza. E dentro de pouco tempo vamos apresentar a nossa versão de Vaishnav Jan to Tene Kahiye, a tal música/hino de que falei no início. E no final de abril, início de maio, o disco estará cá fora. Para lá do aspeto musical, temos a extraordinária presença do ensinamento de Gandhi, que nunca como agora é necessário. Sinto uma grande satisfação por estar a chamar a atenção para esta figura extraordinária..Como tem visto a forma como hoje em dia consumimos a música. Tendo em conta a essência e a particularidade do seu registo, acredita que, independentemente do formato - streaming, vinil -, o que interessa é chegar às pessoas? É uma resposta com dois lados. A procura é hoje extremamente fácil, temos acesso a tudo, o que é fantástico. Mas temo um pouco que as pessoas sejam manobradas pelo maioritário. Não existindo conhecimentos musicais bem afirmados, facilmente são influenciados pelos mais fortes - Estados Unidos e Reino Unido - , e isso torna mais difícil projetar certos e determinados tipos de música. Tenho pena de que esteja a provocar tribalização de certos géneros musicais. Este novo tipo de escuta da música [streaming], sendo muito diversificado, acaba por não permitir contacto com coisas diferentes. Mas, por outro lado é fantástico, temos acesso a tudo! Quem é hoje o seu público? Sempre tive essa curiosidade... Mas sempre me disseram que é muito heterogéneo, e isso alegra-me. A música é para juntar, não para separar. Lá está, por isso digo que não gosto da tribalização da música. É uma vitória se conseguir puxar para a minha música alguém que não me ouvia. Mas respondendo diretamente: não consigo indicar quem é o meu tipo de público..Mas, por exemplo, se tivesse de explicar a um adolescente como é a sua música, isto antes de ele a escutar, o que lhe poderia dizer? É a musica de um português do mundo. Chego à conclusão de que os meus heróis, os músicos de cabeceira, como costumo dizer, são sempre alguém que tem a combinação de duas coisas: gente que tem a música bem alicerçada numa certa e determinada tradição, mas ao mesmo tempo sempre a tentar ver novos ângulos. O completar dessas duas características é que faz o grande músico, para além da qualidade da sua música e a profundidade da sua mensagem, etc. Quando digo um português do mundo é porque apresentou uma determinada raiz na minha música, mas sempre a ir buscar coisas novas, sobretudo na ligação de Portugal com o mundo, com a Índia, com Macau com o Brasil. Disse que tinha músicos de cabeceira. O que anda a ouvir? São os meus heróis. Músicos como o Joe Coltrane, Dexter Gordon. Ou se vou para a música indiana oiço o Bismillah Khan, entre outros, ou alguns músicos chineses, ou ainda, por exemplo, Sivuca, o grande acordeonista brasileiro. E oiço muito Cecilia Bartoli, uma meio-soprano, que adoro. São grandes músicos com quem aprendemos muito..E com toda a situação da pandemia, presumo que tenha saudades dos palcos... Não vamos por aí... falar nisso vai dar em comoção [risos]. Nesta altura tenho ido tocar para o campo, para os pássaros, porque gosto muito de os ouvir e desse isolamento. Mas faz-me falta aquilo que a música provoca no momento. A reação, a sala, a maneira como o público reage... tudo isso faz muita falta. Com mais de 50 anos de carreira, se tivesse de fazer um resumo do que tem sido até agora, como o faria? Penso que a carreira deve ser medida no dia-a-dia e no sentido em que tem de haver interesse em fazer música. Acordo todos os dias a pensar como vou tocar isto ou pegar naquilo. Acredito também que o músico necessita de um tipo de solidão, de uma forma de fazer música, para depois transmitir o que fez às outras pessoas. No meu caso, o amor de pegar numa flauta e tocar e depois transmitir isso às pessoas. A minha carreira é isso.. filipe.gil@dn.pt