Antoni Mendezona  elogia o estilo de vida descontraído que veio encontrar em Portugal.
Antoni Mendezona elogia o estilo de vida descontraído que veio encontrar em Portugal.Foto: Reinaldo Rodrigues

Antoni Mendezona. A soprano filipina que escolheu Lisboa para viver

Casada com um brasileiro e mãe de dois filhos, em 2021 Antoni Mendezona, nascida na ilha de Cebu e que em adolescente foi viver para os EUA, mudou-se para a Madeira e, no ano seguinte, para Lisboa.
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Desde criança que Antoni Mendezona gosta de cantar - com as irmãs, nas Filipinas, ou no coro do liceu, já depois de a família se mudar para os EUA. Mas foi no dia em que a professora de canto, no 1.º ano da Faculdade, a levou a ver La Bohème na Ópera de São Francisco que a filipina soube que era exatamente aquilo que queria fazer. “A Anna Netrebko era Musetta. E, na primeira cena, quando ela aparece em palco, mesmo antes de cantar Quando m’en vo… A minha mente explodiu. Só conseguia pensar: ‘É isto que eu quero fazer.’ É o momento mais cliché da minha vida”, ri-se, sentada numa pastelaria da Avenida de Roma, em Lisboa, cidade que escolheu há três anos para viver com a família.

Depois de um período difícil, quando os pais se mudaram para a América, Antoni descobrira o seu caminho. Decidiu então que não queria ser professora de Música, queria ser cantora de ópera. “A orquestra era linda. A ópera era linda. A produção de Franco Zeffirelli foi incrível. E ver a Anna Netrebko no seu auge!”, recorda, confessando que na altura “não fazia ideia de quem ela era”.

“Não fazia ideia do Zeffirelli. Eu tinha 18 anos. Mas quando ela apareceu pensei: ‘Isto é o que eu quero fazer’. Então, naquele semestre, mudei de curso para Performance Vocal. Percebi que era aquilo que eu era. Não queria ser professora, queria cantar num palco.”

Apaixonou-se pela ópera. A música, claro, mas também o facto de ser uma forma de arte colaborativa. “Não escolhi este caminho porque queria ser uma estrela. Nunca quis estar no centro das atenções. Escolhi esta profissão porque é revigorante. E é bonita”, conta, sentada diante de um café e de um Fofo de Belas, um bolo cuja textura faz jus ao nome. As mesas à nossa volta vão-se enchendo. Numa manhã de terça-feira são sobretudo senhoras de uma certa idade que se juntam para o pequeno-almoço e um dedo de conversa.

Conheci Antoni no Alentejo, quando atuou em Arraiolos no âmbito do festival Terras sem Sombra, na Igreja da Misericórdia, acompanhada pelo pianista português Nuno Margarido Lopes. Mas se a voz da soprano impressiona quando rodeada pelos azulejos setecentistas da igreja, não impressiona menos ar livre, como a ouvi no dia seguinte, a cantar debaixo de uma azinheira, durante a atividade de biodiversidade que marca sempre a programação deste festival, que percorre várias localidades do Alentejo, aliando música clássica, património e biodiversidade.

Antoni no Terras sem Sombra, em Arraiolos, com o pianista Nuno Margarido Lopes.
Antoni no Terras sem Sombra, em Arraiolos, com o pianista Nuno Margarido Lopes.Mabille Tamala / Festival Terras sem Sombra

Combinámos então encontrar-nos em Lisboa para me contar porque escolheu Portugal para viver com o marido e os dois filhos. Mas comecemos pelo início. Antoni nasceu na ilha filipina de Cebu - aquela onde Fernão de Magalhães foi morto em 1521. Filha de um empresário e de uma dona de casa que depois tirou um mestrado em Aconselhamento Matrimonial e Familiar, o gosto pelas artes já corria na família, ou não se tivessem os pais conhecido quando ambos participaram num musical. “Não eram profissionais, mas gostavam muito de música e de cantar. Nas Filipinas, estávamos constantemente rodeados de música. É uma grande parte da cultura”, conta Antoni.

Em criança, teve aulas de piano, durante sete anos. Mas quando chegou à adolescência convenceu a mãe a desistir, para passar mais tempo com os amigos. Isso não impedia que todos os dias se cantasse lá em casa, com Antoni ao piano e as três irmãs mais velhas a alinharem. Apesar disso, “nas Filipinas, nunca foi uma opção de carreira. Nem me ocorreu. Eu queria ser advogada, lutar pela justiça social”, recorda Antoni.

De origem filipina, espanhola e americana, o sonho de ir para os EUA sempre esteve em cima da mesa para os Mendezona. “O avô do meu pai era americano e mudou-se para as Filipinas em 1918. Casou-se com uma filipina, estabeleceu-se lá, tinha uma quinta. O meu pai tentou sempre obter a cidadania americana”, conta Antoni. E acrescenta: “Sempre soubemos que íamos mudar-nos quando obtivéssemos a cidadania.”

Foi o que aconteceu quando Antoni tinha 15 anos. A família mudou-se para a Califórnia. Mas, para a adolescente, a América não foi logo um sonho. “Eu estava tão deprimida!”, confessa, lembrando como os subúrbios de Sacramento, não podiam ser mais diferentes da vida nas Filipinas. “A cultura é tão diferente! Nas Filipinas as pessoas festejam, dançam, bebem. Ali era um bairro muito pequeno, muito branco”, recorda. Pela primeira vez, Antoni percebeu o que era a experiência de imigrante, apesar de a própria admitir que os pais “tinham algum dinheiro. “Não estou a comparar as dificuldades por que passaram com o que vivem os refugiados. Mas eles tiveram de começar de novo.”

Para Antoni, a música foi a salvação. No coro do liceu encontrou alguma felicidade e quando, aos 17 anos, teve de escolher para que faculdade ir, optou por Educação Musical, com a ideia de dar aulas. E foi todo um mundo novo que se abriu para ela. No momento de escolher o instrumento em que se queria especializar, Antoni não hesitou: escolheu a voz. “Eu cantava no coro, sempre cantei como soprano. E como sabia tocar piano, ajudava os outros músicos com os seus papéis. Sempre me destaquei. Por causa da minha voz”, explica.

Mas o momento de viragem só se deu com a tal ida à Ópera de São Francisco. Depois de uma audição para um espectáculo da escola, Antoni estreou-se com A Flauta Mágica. “Sou uma soprano ligeira. Na altura tinha uma voz pequena, porque não tinha formação clássica. E todos me diziam que eu devia cantar música barroca, mas eu não queria ouvir isso, porque achava que ainda estava a desenvolver a voz.”

Terminado o curso, ofereceram-lhe o primeiro papel profissional numa ópera - em Turn of the Screw, de Benjamin Britten. “Não podia ter tido uma estreia melhor. Fiz o papel de uma rapariga pequena. Eu era a Flora, porque era baixinha. Percebo os estereótipos. Eu parecia uma rapariguinha, mas sabia cantar. E era uma música difícil. E eu era boa música”, recorda.

Seguiu-se a entrada no Westminster Choir College, que fica na cidade de Princeton, apesar de não fazer parte da famosa universidade, e levou Antoni para a Costa Leste. Ali tirou o mestrado em Performance Vocal e Pedagogia. “Foi uma loucura. Nunca tinha estudado tanto na minha vida”, diz. E continua: “Era obrigatório cantar em coro, mas coro de orquestra. Então, cantámos com a Filarmónica de Nova Iorque. E cantámos Mahler com a Mahler Chamber Orchestra, no Carnegie Hall, no seu 75.º aniversário. E cantámos a 5.ª Sinfonia de Beethoven. E a 9.ª também, no Carnegie Hall. E estávamos todos a chorar. Todos nós, nerds, a chorar enquanto cantávamos.”

Nesses anos, ganhou o hábito de apanhar o comboio até Nova Iorque para ir às audições. E foi conseguindo alguns papéis. Às vezes com a sorte a ajudar, como quando a soprano de que era suplente ficou doente e a convidaram para atuar na Hungria ou, quando o mesmo voltou a acontecer, permitindo-lhe atuar na estreia de Hotel Casablanca, levando o crítico do jornal The New York Times a escrever como “roubou as cenas com a sua voz e a sua personalidade alegre”.

Pouco depois, e seguindo o conselho do agente que lhe estava sempre a dizer para se mudar para a Europa, Antoni aproveitou uma oportunidade e foi viver uns meses na Suíça, numa aldeia chamada Savognin, no cantão de Grisões. Mas se estava no centro da Europa, a verdade é que as prometidas audições não surgiram e Antoni acabou por voltar para os EUA ao fim de quatro meses e meio.

Estávamos em 2009 e as coisas não estavam fáceis. Para se sustentar enquanto continuava a ir às audições, Antoni arranjou um emprego como rececionista numa agência de publicidade. E foi aí que conheceu o futuro marido, Murilo, que era o diretor da Pós-produção. Casaram-se.

Antoni começou então a entrar na cena musical filipina. E logo com a adaptação de um clássico da literatura filipina, Noli me Tangere, de José Rizal. “Há uma ópera escrita sobre ele nos anos 50 e um casal filipino-americano queria produzi-la em Nova Iorque, financiada pela empresária filipino-americana Loida Lewis”, explica Antoni, que foi escolhida para o papel principal. Mas a soprano sabia que aquele não era o papel certo para a sua voz, e quando quiseram levar o espectáculo para Washington, exigiu mudar de papel. “Disse-lhes: ‘Quero cantar o papel de coloratura, porque é o mais adequado para a minha voz’”, recorda agora, sublinhando que aquela foi a primeira vez em que se defendeu como artista.

Correu tão bem que a ópera foi levada para as Filipinas, dando a Antoni a oportunidade de voltar ao seu país natal, mas desta vez em Manila, onde conta: “Até a forma como falam é muito diferente.” Criada a falar inglês e bisaya, o dialeto de Cebu, o tagalog que foi obrigada a aprender na escola ganhou mais fluência quando teve de decorar o papel para esta ópera.

Casada desde 2014 com o brasileiro Murilo, mãe de Emilia, de 6 anos, e Álvaro, de 4, Antoni não esconde que ser mãe ainda pode ser um tabu no mundo da ópera. “As pessoas olham-nos de forma diferente quando decidimos ter filhos.” Mas não desistiu, continuou a ir a audições, levando a bebé ou deixando-a com amigos. E os trabalhos iam surgindo. Mas tudo mudou com a pandemia. “Fechou tudo”, recorda Antoni, admitindo que não teve disponibilidade mental para procurar as formas alternativas de chegar ao público que alguns artistas adotaram. Na altura, estavam a viver em New Jersey e Antoni estava grávida do segundo filho.

De Ponta do Sol para Lisboa

É neste mundo pandémico que Antoni e Murilo decidem mudar-se para Portugal. Mas porquê Portugal, pergunto? “Sempre quis viver na Europa”, responde a soprano. E vai dando razões, desde a fuga ao ambiente político que se vive na América, à segurança, ao estilo de vida mais descontraído, passando por saberem que, mesmo que não pudessem ter um seguro de saúde, o Serviço Nacional de Saúde existe.

Quando Murilo teve de ficar em teletrabalho, perceberam que o momento chegara. Estávamos em agosto de 2021 e a escolha foi a ilha da Madeira. “É linda e a internet é boa”, explica Antoni, negando ter sido convencida por amigos, mas admitindo que o facto de o marido ser brasileiro e falar português talvez a tenha influenciado. Instalados em Ponta do Sol, com os filhos e os dois cães que trouxeram da América, Antoni começou a trabalhar para uma agência, em Viena, que fazia Relações Públicas para artistas, especializando-se em maestros e cantores de ópera cuja promoção garante nas redes sociais - uma atividade que mantém até hoje. Mas isso não amenizou a sensação de perda por não poder cantar. “Foi como se algo tivesse sido cortado da minha vida, arrancado de mim”, tenta explicar. Até que um dia foi a um concerto barroco. E gostou tanto que, no final, se apresentou ao maestro e, dias depois, este convidou-a para cantar com eles.

Só com o fim da pandemia, em 2022, é que Antoni e a família se mudaram para Lisboa. Murilo teve de ficar para trás por causa das autorizações dos cães. E Antoni chega com duas crianças pequenas e dez malas de viagem. Ao ver o apartamento, vazio e sujo, decide ir comprar uma esfregona. Quando ia a caminho do supermercado viu uma loja de produtos filipinos - “e comecei a chorar”. “Tinha molho de soja. E tinha vinagre. E comida filipina. E gelado filipino. Tudo aquilo de de que eu estava a precisar”, continua. A dona da loja era Leilani Yu, presidente da Associação Filipina Portuguesa, e foi ela quem desafiou Antoni a ser jurada num concurso de canto por ocasião do Dia Nacional das Filipinas. Aí conheceu Sara Fonseca e José António Falcão, os organizadores do Festival Terras Sem Sombra, e surgiu o convite para atuar em Arraiolos. “Só quero fazer o trabalho de que gosto e quero trabalhar com pessoas que sejam boas e que também gostem do que fazem. E acho que posso encontrar isso aqui”, garante.

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