Annabelle Hirsch: “Este é um livro feminista porque nele tento mostrar que há vários feminismos”
Leonardo Negrão / Global Imagens

Annabelle Hirsch: “Este é um livro feminista porque nele tento mostrar que há vários feminismos”

Em Lisboa para promover 'Uma História das Mulheres em 101 Objetos', Annabelle Hirsch falou ao DN do seu processo de seleção e explicou porque o século XIX é “o pior de sempre”, uma vez que “inventaram a mulher que é mãe, esposa, que fica em casa, que não gosta de sexo, que é silenciosa, que é um pouco rabugenta.”
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Conta no prefácio que a ideia de escrever este livro lhe surgiu durante uma visita à casa-museu de Karen Blixen, na Dinamarca, quando ficou impressionada com o grande número de panelas que ela tinha...  
Conto sempre essa história e é verdade. Quando fui à casa-museu fiquei surpreendida - nem sei bem porquê, talvez porque quando pensamos em Karen Blixen, pensamos em África, pensamos em escrita, pensamos naquela mulher minúscula, mas nunca tinha pensado nela a cozinhar, ou a comer, a fazer as coisas que fazemos no dia-a-dia. Nunca tinha pensado nela a viver. Mas ela tinha umas 50 panelas e fiquei mesmo surpreendida. Foi naquele momento que pensei como os objetos têm a capacidade de quebrar a história e trazê-la para o plano do dia-a-dia. Dão-nos a oportunidade de entrar no quotidiano de uma pessoa e de repensar a sua vida. Por um lado percebi que os objetos têm este poder, por outro quis escrever uma história sobre mulheres porque sempre me interessou a história no feminino, os livros escritos por mulheres. E nos últimos anos tinha a sensação que se estava focado nas “mulheres esquecidas da história” ou nas “mulheres poderosas da história”. O que é ótimo, mas não me parece que nos diga muito sobre como é que a vida das mulheres foi mesmo. Quis escrever uma história que fosse menos a das vítimas ou das vencedoras e mais a das mulheres comuns, que tentaram, fracassaram e tentaram de novo. Que tiveram avanços e recuos. E contar essa história através de objetos é como abrir uma porta para a vida, para um espaço íntimo. É como estar sentada ao lado de alguém e conhecê-la melhor. 

E como é que passou das panelas de Karen Blixen e chegou a estes 101 objetos?
Na verdade, no original em alemão, são 100. Termina com o pussy hat. No início achei que 100 ia ser muito, mas quando fiz a pesquisa, percebi: caramba, não é suficiente. Até tentei convencer o meu editor que fazer 150 era original, mas não [risos]. Podia ter feito muitos mais, foi difícil reduzir. Eu fiz pesquisa em vários níveis. Já tinha na cabeça a história que queria contar, queria que fosse cronológica, para o leitor poder ver as vagas da história, como avançou e recuou. Depois tinha temas, como sexualidade, maternidade, escrita, moda, corpo, medicina, ciência, etc. E a partir destes dois níveis, tentei encontrar os objetos. A maior parte das vezes eu queria falar sobre algo, digamos por exemplo o amor cortês, e procurava o objeto para contar essa história. Mas depois de algum tempo passou a ser ao contrário - de repente surgiam objetos cuja história eu queria mesmo contar. Há tantos que gostava de ter no livro. Tentámos que fosse equilibrado. Mas alguns objetos, como o alfinete de chapéu, nem sei como o encontrei, acho que ele veio ter comigo. Foi um pouco um jogo de sorte.

O primeiro objeto que surge no seu livro é logo surpreendente - um fémur partido e sarado... Porque é que começou por aqui?
Primeiro porque quis ter algo surpreendente e também porque fiquei a conhecer a história de Margaret Mead que, quando questionada numa palestra na universidade sobre qual o objeto que considerava o primeiro vestígio da nossa civilização deu esta resposta curiosa: um fémur que se partiu e depois sarou porque alguém cuidou daquela pessoa. Eu adorei a resposta dela porque era exatamente o que eu queria fazer com o meu livro. Nós olhamos para a história como algo feito de guerras e conquistas, de poder, etc. Claro que isso é importante e nos transformou naquilo que somos, mas o que também fez de nós o que somos, talvez até mais, é que nos preocupamos, que cuidamos. Coisas que não são mais femininas do que masculinas. Foi bom começar por algo que é básico: sem ter quem cuide de nós, não podemos viver. Gostava de ter mais Pré-História no livro. É um campo em que nos últimos 10, 15 anos tem havido tantas novas descobertas que nos fizeram revisitar esta época. E percebemos que não é provável que na altura dissessem simplesmente às mulheres para ficarem ali sentadas a tomar conta dos filhos, porque se fosse assim, não teriam sobrevivido. 

As histórias de vários destes objetos surpreenderam-me. Desde as mãos das pinturas rupestres ao espartilho, que algumas mulheres até nem odiavam tanto quanto se julga hoje. A história das mulheres, como a destes objetos, é mal interpretada desde a pré-história por ter sido dada ao longo dos tempos pelo olhar dos homens?
A história mainstream talvez. A forma como a maior parte das pessoas vê a história está errada. No caso da Pré-História as novas tecnologias estão a permitir descobrir coisas que não sabíamos antes. Mas se pensar na Idade Média, a imagem que temos é de algo muito sombrio. É verdade que o final da Idade Média não foi uma boa época, mas durante muito tempo foi uma época progressista, especialmente para as mulheres. Nos anos 1920, o livro Mulheres da Idade Média já descrevia como as mulheres trabalhavam naquela época, como estavam na vida pública, não estavam escondidas num castelo com o seu dragão. Não é novo, mas nunca chegou ao mainstream porque a história era narrada e controlada por homens. Mas por outro lado também é perigoso tentar reescrever a história de uma forma feminina, dizendo que as mulheres foram superpoderosas ou que foram oprimidas o tempo todo e que agora temos de nos vingar. Ambas são mentira. Porque sempre houve momentos em que as mulheres tiveram um papel de relevo e outros, devido a crises, epidemias, etc, em que houve um recuo. Mesmo no século XIX. O século XIX foi o pior século de sempre, na relação entre homens e mulheres. 

Porquê?
Porque foi nessa altura que inventaram a mulher que ainda temos em mente hoje. A mulher que é mãe, que é esposa, que fica em casa, que não gosta de sexo, que é silenciosa, que é um pouco rabugenta. É uma invenção do século XIX. Antes achavam exatamente o contrário. Por exemplo, em relação ao sexo, antes acreditavam que as mulheres eram doentiamente vorazes e que era preciso protegê-las delas próprias e dos seus desejos loucos. Mas de repente passaram a ser vistas como seres meio-mortos. 

Alguns dos objetos de que fala são tradicionalmente associados à mulher - o espartilho, o biquíni, o batom, a pílula, etc. Mas outros estão longe de ser objetivos femininos, fez questão de juntar estes também e de os associar à história da mulher?
Qual deles é que acha que não é muito feminino?

O smartphone, por exemplo…
Perguntam-me muitas vezes se estes são objetos usados por mulheres. Mas não. Não sinto que os objetos tenham género. Mesmo se alguns estão mais associados a um deles. Por exemplo, não há homens a usar espartilho, apesar de no século XIX ter havido alguns. Mas sim, é verdade que o smartphone não é de todo um objeto feminino. É simplesmente um objeto. Mas acho que tem um significado especial para as mulheres porque hoje há um gap nos smartphone - as mulheres têm menos smartphones do que os homens. Porque há regiões do mundo em que os homens sentem que os smartphones lhes dão uma espécie de liberdade e as mulheres não devem ter acesso a essa liberdade. Mas há mais exemplos. Hoje quando vemos um bidé não pensamos que seja um objeto feminino. Eu nunca uso um bidé e o meu marido adora um bidé. Mas historicamente sim. Já o batom está tradicionalmente associado às mulheres. Mas porque é que tem de ser assim?

Alguma história que a tenha surpreendido especialmente? 
Há muitas! Mas eu fiquei surpreendida com o alfinete de chapéu. É muito interessante. Há uns anos em França discutiu-se muito a segurança das mulheres nas ruas. O que fazer contra os piropos, se devia haver leis as proteger, se devia haver multas. E para muitos de nós isto parecia uma discussão muito progressista. Mas descobrir que em 1900 as pessoas já discutiam - publicamente, nos jornais - a segurança das mulheres nas ruas, para mim foi muito surpreendente. É algo que me deixa feliz e triste ao mesmo tempo, porque por um lado podemos sentir-nos próximos daquelas pessoas, por outro é louco que não tenhamos evoluído nada desde então. Como o julgamento, no século XVII da pintora Artemisia Gentileschi que acusou um homem de violação e acabou por ser ela a ser torturada para averiguarem se estava a dizer a verdade. Claro que algumas coisas mudaram, mas nem tanto assim. 

Tem nacionalidade francesa e alemã, viveu em ambos os países, também em Itália, como mulher do mundo sente que um livro como este, que conta a história das mulheres, continua a fazer mais falta do que nunca neste século XXI?
Bom, claro que já houve muitas boas histórias das mulheres, que são muito mais importantes do que este livro. Mas são muito académicas. O que eu gosto neste livro é que é uma visão muito pessoal da História. É aquilo que eu gosto. Não é “A” história das mulheres, é a “MINHA” história das mulheres. Uma vez que a história no feminino ainda é um campo que está em construção, ainda podemos brincar. É importante mostrar as várias cores e as várias camadas da história, esta é só uma camada. É o conjunto das camadas que pode dar uma visão de conjunto. Ler só este livro não chega. 

Diria que é um livro feminista?
Já me perguntaram isso várias vezes desde que cheguei [risos] e respondo sempre o mesmo: sim, mas não sei o que isso significa hoje em dia. Há tantos feminismos. Portanto não é um livro feminista no sentido em que não quer mostrar que há um só feminismo. Mas é um livro feminista porque nele tento mostrar que há vários feminismos. Tentei não impor um feminismo. Tentei mostrar que há vários e cada um é livre de escolher aquele a que quer aderir. 

No dia 5 de março sai o audiobook com a atriz Gillian Anderson a ler o fémur sarado, mas também outros nomes de peso como Margaret Atwood, Olivia Colman, Elif Shafak, etc. Como foi feita a escolha destas mulheres, foi um critério seu, são figuras que admira?
Escolhi algumas delas. Por exemplo, Hanna Schygulla, que é uma atriz alemã dos anos 70, que aqui não é muito conhecida, mas que fez filmes com Fassbender e é fantástica. Para mim é uma estrela. E claro, Margaret Atwood, cuja escrita adoro e que fiquei muito feliz por ter aceitado. E adoro a voz dela. Gillian Anderson, também. Portanto houve algumas que eu escolhi, como Hanna Schygulla, a atriz francesa Virginie Efira, mas gosto de todas elas. E o que é agradável é que são todas muito diferentes umas das outras, o que dá a impressão de formarem uma espécie de coro. São as mulheres de hoje, estas mulheres fantásticas, a dar as suas vozes às mulheres do passado. É como uma sororidade.

Algumas objetos nas palavras da autora

“Devido a esta conotação entre a libertinagem e o bidé, o objeto era frequentemente apelidade de ‘confessionário’ das mulheres ou de ‘confidente’ das senhoras. Elas contavam-lhe tudo e lavavam-se de todos os seus ‘pecados’ nele.”


“É provável que o espartilho espanhol não tenha sido concebido para acabrunhar as mulheres, mas para dar às aristocratas uma postura altiva e, assim, realçar a sua superioridade.”

“A antiga preocupação das sufragistas, ou seja, defender o direito de voto, já tinha ficado para trás. O Le Rouge Baiser trata de outro direito - o direito ao sexo.”

“Hoje em dia, as mulheres com poder ou as empreendedoras das grandes cidades têm à mão dois ou três telemóveis a piscar, a vibrar e a tocar incessantemente. Noutras partes do mundo, os telemóveis são coisa de homens.”

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