Ancestralidade ibérica e matriz sefardita muito valorizadas pelos judeus nos Estados Unidos 

Investigadora do CHAM- Centro de Humanidades da Universidade Nova, Carla Vieira é autora de Judeus Portugueses na América, relato de uma emigração especial que começou no século XVII.
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Os judeus que chegaram a Nova Amesterdão no século XVII vindos do Recife depois de expulsos os holandeses do Brasil, e dos quais fala no livro, até que ponto mantinham algum tipo de ligação a Portugal?
São muitas as dúvidas sobre a identidade deste primeiro grupo de judeus que aportou em Nova Amesterdão em 1654. Porém, é possível que alguns ainda tivessem nascido em Portugal e rumado ao Brasil Holandês devido à perseguição inquisitorial ou em busca de novas oportunidades. Outros (talvez a maioria) seriam naturais do Brasil e teriam assistido à ocupação holandesa em 1630. Haveria ainda judeus de Amesterdão, muitos também de origem ibérica, que se estabeleceram em Pernambuco após a ocupação. Afinal, eram essencialmente estes três grupos que constituíam a comunidade judaica no Brasil Holandês. Porém, este primeiro grupo, na sua larga maioria, não fincou raízes em Nova Amesterdão. As comunidades que começam a emergir na América colonial a partir de finais do século XVII e ao longo do século XVIII têm outras origens. Em particular, provêm das comunidades caribenhas e da metrópole londrina, onde, desde a readmissão dos judeus em Inglaterra em 1656, se desenvolveu uma comunidade judaica com uma forte matriz portuguesa.

Que influência tiveram os sefarditas de origem portuguesa na comunidade judaica americana que se formou depois com a chegada de outras vagas de judeus, muitos deles asquenazes?
Ao contrário do que acontecia nas comunidades sefarditas na Europa, onde a separação face aos asquenazes era instituída nos regulamentos das próprias congregações judaicas, no caso das comunidades norte-americanas, o diálogo e a relação entre os dois grupos decorreram com grande proximidade desde o início. Embora as comunidades de Nova Iorque ou Newport, por exemplo, fossem originalmente sefarditas e conservassem o ritual sefardita nas respetivas sinagogas, acolhiam sem restrições os judeus asquenazes. Inclusivamente, os casamentos entre sefarditas e asquenazes vulgarizaram-se desde cedo, resultando num cruzamento de linhagens que define o judaísmo norte-americano nas suas origens. Contudo, a matriz sefardita e a ancestralidade ibérica continuaram a ser as mais valorizadas em termos sociais e religiosos, mesmo quando os asquenazes se tornaram uma maioria no interior das comunidades.

Houve alguns judeus que emigraram para a América do Norte a partir de Portugal. Acreditavam aí ter mais liberdade religiosa do que na Europa do Norte ou no Império Otomano, os tradicionais refúgios?
A rota Portugal-América do Norte não era a mais comum. Dos casos que apresento no livro, apenas um, o mercador Aaron Lopez, partiu diretamente de Portugal para a costa norte-americana, mais exatamente para Newport. Mais tarde, ele viria a providenciar condições para a viagem de alguns parentes pela mesma via. Contudo, a maioria dos que chegavam às colónias norte-americanas provinham de outras comunidades sefarditas nas Caraíbas (Jamaica, Curaçau, Suriname) e na Europa, em particular Londres. Além disso, a questão da tolerância religiosa não era uniforme em toda a América britânica: havia colónias, como Nova Iorque, onde os judeus usufruíam, de facto, de certos direitos civis que lhes estavam vedados na Europa, até mesmo em Londres ou Amesterdão; enquanto noutras a liberdade de culto e o acesso a determinados cargos e direitos estavam sujeitos a restrições.

Como foi a integração dos judeus de origem portuguesa nos novos Estados Unidos da América, a partir da Declaração de Independência de 1776?
Crê-se que a maior parte dos judeus residentes da América do Norte tenham apoiado a causa patriota durante a Guerra da Independência. Assim, estiveram do lado do vencedor e acabaram por beneficiar dessa posição. A consagração da liberdade religiosa na Constituição concedeu-lhes segurança nos seus direitos e resultou num incremento da sua condição enquanto minoria religiosa. Alguns judeus de origem portuguesa acabaram por ganhar algum protagonismo neste processo de transição para a independência e na construção nos novos EUA. É o caso dos irmãos Gershom e Moses Mendes Seixas, de que falo no livro, que se tornaram autênticos porta-vozes das respetivas comunidades judaicas (Nova Iorque e Newport) junto do poder político. Uma carta que Moses Seixas escreveu a George Washington em 1790, dando-lhe as boas-vindas por ocasião da sua visita a Newport, acabaria por se tornar particularmente célebre pela expressão "to bigotry no sanction, to persecution no assistance", que o presidente acabaria por parafrasear na resposta a Seixas. Esta carta de Washington é hoje considerada fundacional dos princípios da liberdade religiosa e da separação entre Estado e Igreja nos primórdios dos Estados Unidos.

Além de Emma Lazarus, a poetisa cujo soneto está gravado no pedestal da Estátua da Liberdade, que outros judeus de origem portuguesa ganharam protagonismo nos Estados Unidos?
A ascendência portuguesa de Emma Lazarus é já bastante distante, remontando a um trisavô, Isaac Mendes Seixas, que nascera em Lisboa e, ainda em criança, se mudara com a família para Londres. Há pouco, dei o exemplo de dois tios-bisavôs de Lazarus, Gershom e Moses Seixas. No livro, abordo outros exemplos, alguns com um vínculo bem mais forte a Portugal. Por exemplo, Aaron Lopez, um dos mais influentes mercadores da América colonial; ou John de Sequeira, médico do primeiro hospital psiquiátrico (usando a terminologia atual) construído na América e que, além disso, estudou as doenças mais prevalecentes na Virgínia. Ambos nasceram em Portugal e chegaram à América já em idade adulta, o primeiro diretamente via Lisboa, o segundo, após ter terminado o curso de Medicina em Leiden.

Portugal decidiu oferecer a nacionalidade aos descendentes dos judeus que partiram. Na comunidade judaica americana há casos de interesse no regresso, ou quando muito visitam Portugal como turistas para ver os vestígios das antigas sinagogas e judiarias?
Confesso que talvez não seja a pessoa mais versada para dar informações a esse respeito. Pelo que tenho averiguado junto de colegas que trabalham na produção da prova genealógica exigida no processo e de advogados, existem efetivamente alguns casos de norte-americanos a requerer a nacionalidade portuguesa por essa via, embora numa proporção modesta quando comparada com outros países, como a Turquia ou a Rússia. Contudo, mesmo sem esse objetivo em mente, existe o interesse em explorar esse vínculo genealógico a Portugal e a Espanha, fruto da sobrevivência dessa memória identitária no interior de algumas famílias norte-americanas, algumas das quais ainda conservam o sobrenome português, mesmo que já algo deturpado. Porém, estamos sempre a falar de uma minoria dentro da comunidade judaica americana atual.

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