Cultura
19 maio 2022 às 05h00

Top Gun: Maverick, o filme que deixou Cannes nostálgica de 1986

Tom Cruise veio a voar para o festival para a estreia de Top Gun: Maverick. Foi o alvoroço que se esperava no mesmo dia em que o único filme russo presente foi mostrado, Tchaikovsky"s Wife, uma história sobre a identidade sexual do compositor russo feita por um cineasta dissidente.

Pode um filme de mero entretenimento e que estava na gaveta há dois anos parar literalmente um festival? Pode, se esse filme se chamar Top Gun: Maverick, tiver Tom Cruise e o próprio festival programar para esse dia os filmes menos mediáticos da competição. O blockbuster em questão está em Cannes fora de competição, mas é o título com maior alarido promocional - pela Croisette estão cartazes em tamanho gigante, um ecrã em LED com imagens de Cruise, o ator que ontem encheu a segunda maior sala do Palais para um encontro com o público. Um histerismo feito à medida do público cannois que glorifica sempre heróis de Hollywood, como costuma acontecer com George Clooney e Brad Pitt. Este ano ainda vem aí Tom Hanks, produtor e ator em Elvis, de Baz Luhrman.

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A coincidir com a estreia em Cannes desta sequela, o festival prestou uma homenagem a Tom Cruise, que nas palavras do diretor do festival, Thierry Frémaux "trata-se de um ator que sempre teve bom gosto nas suas escolhas. Cruise é uma grande estrela de cinema, alguém que se tem esforçado para que o grande público volte às salas. Para vermos um filme com Cruise temos mesmo de ir às salas de cinema. É um homem do cinema e é um prazer tê-lo em Cannes. Para nós, é muito importante ter Top Gun: Maverick".

Cruise, refira-se de passagem, estava ausente do festival desde o falhado Horizonte Longínquo (1992) , de Ron Howard. Este é, de facto, um regresso em grande, uma forma feliz de a Paramount lançar na Europa um bulldozer que pode voltar a levar multidões às salas, mesmo apesar de ser uma continuação de um filme de 1986.

Aqui pela Croisette, ainda chegou a haver o rumor de que o estúdio iria investir uma fortuna numa festa mediática com Tom Cruise na praia. Aliás, a tal festa promocional só não aconteceu porque havia um compromisso real do ator: a sua presença numa celebração em Londres do jubileu de platina da Rainha de Inglaterra. Não houve festa mas aconteceu uma chegada ao photocall do terraço do Palais em helicóptero. Tom Cruise sabe e gosta deste fogo-de-artifício de superstar e desencadeou também a loucura no palanque ante os fotógrafos.

Pior foi ainda na Croisette e nas ruas circundantes à escadaria do palácio - tudo parado, multidão ao sol sem distância alguma (nas ruas da cidade ninguém tem máscara e nas salas são muito poucos os que a usam, mesmo sob forte recomendação da organização). Um pandemónio a lembrar o alvoroço da última visita a Cannes de Brad Pitt...

Mas fora de competição ou não, o filme de Joseph Kosinski é material para Cannes? Talvez seja ousadia feroz dos programadores mas o festival precisa de se aliar às maiores majors de Hollywood, sobretudo numa altura em que as relações com a Netflix estão cortadas (o gigante de streaming não pode colocar filmes em competição e recusa-se a cedê-los fora dela...).

Ainda assim, este ressuscitado Top Gun é de uma tremenda desenvoltura como máquina de espetáculo total. Um divertimento sensorial que é um manifesto de crença do topo de gama técnico na eficácia de colocar de pé um colossal edifício de entretenimento. Mais do que ver aviões a passar e assistir a homens de tronco nu na praia a jogar futebol americano, o regresso do piloto de óculos escuros continua a tirar o fôlego. Desta vez, mais do que em 1986, é fundamental essa noção de vertigem, posta em prática por uma aposta em câmaras IMAX instaladas em verdadeiros caças da marinha dos EUA. A velocidade estonteante dos motores G é captada não como habilidade tecnológica, mas, sobretudo, como ensaio de uma lógica de storytelling nas cenas dos combates aéreos.

A história mostra-nos como o piloto Maverick (Cruise) não envelheceu desde 1986, apesar de já não ter a namorada Charlie (Kelly McGillis, atriz que se retirou do circuito) e nunca ter subido no ranking militar.

Agora é chamado para a mesma escola onde foi formado, o local na Califórnia onde pilotam os melhores dos melhores. É chamado por Ice Man (Val Kilmer num cameo especial) para dirigir os jovens pilotos numa missão para bombardear urânio de uma nação "inimiga". Segundo os almirantes, uma "missão suicida". Neste seu regresso, Maverick volta a andar de moto na pista com óculos iguais e um casaco dos anos 1980, embora haja uma preocupação: tem de lidar com o filho do amigo morto, Goose. Rooster ( Miles Teller) nunca compreendeu a morte do pai e culpa Maverick pelo sucedido. Como se não bastasse, há ainda uma ex-namorada, Penny (Jennifer Connelly), precisamente o grande amor da sua vida.

Mas Top Gun: Maverick quase que não precisa de enredo, vive de um encantamento especial de um conceito sobre os valores da nostalgia. Em boa verdade, Joseph Kosinski, cineasta que no fim de semana passado esteve virtualmente em Lisboa numa ação de promoção em forma de holograma, sabe sensatamente reviver o passado naquela escola de cadetes. Com boa vontade, estamos na presença de uma vibrante cerimónia de festejo de uma saudade de um cinema dos anos 1980, cheio de slow-motions, fotografia estilizada e canções na banda-sonora - não temos os Berlin a providenciar balada, mas há Lady Gaga.

Gala assumida de uma nostalgia que deixa também entrar os millennials: a realização de Kosinski não faz copy-paste do filme anterior; atualiza-o e celebra-o. No fim, há menção escrita: "em memória de Tony Scott", o realizador do original. O resto é carisma de Tom Cruise, suficiente para minimizar algumas tendências imperialistas do argumento e a forma não muito dignificante na construção das personagens femininas.

Na competição, no tal dia em que Top Gun abafou tudo, o destaque maior foi para Tchaikovsky"s Wife, de Kirill Serebrennikov, o tal filme russo que foi acusado de ser financiado por Roman Abramovich e que muitos desejavam que fosse cancelado. Uma desilusão tremenda feita por um cineasta dissidente que parece indeciso entre o produto académico e a desconstrução dos procedimentos de uma biografia, neste caso a história do não-consumado casamento entre o compositor Piotr Tchaikovsky e uma jovem admiradora que nunca aceitou divorciar-se, mesmo percebendo que o músico preferia homens.

Excessivamente longo e com uma estilização que se confunde com publicidade burguesa de luxo, este novo trabalho do cineasta de São Petersburgo tem uma opulência que parece errada para uma história que tenta abordar questões de intimidade sexual. Trata-se de um daqueles casos em que o excesso de mise-en-scène se torna mesmo insuportável, tornando-se nítido que todos aqueles planos-sequência são pura vaidade técnica. Para o fim, resvala mesmo para uma performance teatral que acaba na armadilha da linguagem do videoclipe abastado.

Nem a música de Tchaikovsky redime este desastre, sobretudo porque às tantas há som contemporâneo por mera provocação. Ou melhor, por capricho. Após o trambolhão do anterior Petrov"s Flu, Serebrennikov, cineasta que chegou a estar com problemas com o regime de Putin, ainda se afunda mais.

E é claro que por ser um filme russo a sua passadeira vermelha quase não teve fotógrafos. Foi algo tristonho, quanto mais não seja porque apenas a comitiva artística foi convidada. No Palais de Cannes não entram mesmo figuras ligadas a entidades oficiais russas. Hoje, nas bancas oficiais do festival só se distribuíam crachás de apoio à Ucrânia, um deles dizia Putin com um sinal de veto com as cores da Ucrânia. Mesmo com Tchaikovsky"s Wife na competição, Cannes é realmente um festival que escolheu um lado deste conflito...

dnot@dn.pt