Cultura
30 março 2023 às 07h39

Morreu José Duarte - 1, 2, 3… uma vida inteira de jazz

José Duarte foi um dos grandes divulgadores do jazz clássico e contemporâneo em Portugal. Exigente e rigoroso, nunca se refugiou numa atitude elitista e jamais se cansou de dar a ouvir aos outros os sons da sua paixão..

Para a História, que tende a guardar manchetes despidas de rosto ou voz, José Duarte ficará como o autor do programa mais duradouro da Rádio em Portugal, "Cinco Minutos de Jazz". Mas, para além da persistência revelada por tal longevidade, convirá acrescentar que o homem que morreu na madrugada desta 5.ª feira, aos 84 anos, foi, a par de Luís Villas Boas (1924-1999),o grande divulgador do jazz em Portugal, trabalho que iniciou ainda em ditadura, quando o panorama radiofónico era dominado pelo nacional-cançonetismo. Exigente, chamava São Sinatra ao cantor norte-americano, em quem (ou)via muito mais do que um crooner, venerava Billie Holiday e não baixava a fasquia. Mas era também um comunicador nato e um pedagogo, que, em meados dos anos 1990, foi explicar aos meus alunos na Universidade Lusófona que o jazz também era pensamento contemporâneo (tema da cadeira em causa). Ou que tendo lido o meu texto sobre o filme Terminal de Aeroporto, no JL, me telefonou a perguntar por que razão não falara dos músicos de jazz que o protagonista (interpretado por Tom Hanks) procurava em Nova Iorque. Eram, entre outros, Count Basie, Dizzie Gillespie, Lester Young, Thelonious Monk, Gerry Mulligan e Sonny Rollins, e o José Duarte tinha toda a razão: Era imperdoável eu não ter falado deles.

Quando o conheci, em 1991, por causa de uma entrevista que fiz, para o semanário Sete, aos descendentes de Alfredo Marceneiro, o José Duarte já era muito justamente uma lenda na rádio portuguesa. Nascido no Bairro Alto, em Lisboa, em 1938, foi um dos fundadores do Clube Universitário de Jazz de Lisboa, e o autor do primeiro programa da rádio portuguesa dedicado a este género musical: Jazz, Esse Desconhecido, na Rádio Universidade. A 21 de fevereiro de 1966, a convite de João Martins, iria para o ar o primeiro "5 minutos de jazz", na Rádio Renascença, que nos anos 1980 (depois de uma interrupção após o 25 de Abril) passaria para a Rádio Comercial e, em 1993, para a Antena 1. Em comum, o genérico cheio de swing "1, 2, 3....1,2,3,4,5 minutos de jazz", com a música do saxofonista norte-americano, Lou Donaldson, a replicar. Na Antena 1, assinou ainda outros programas, como A Menina Dança ou A Grande Música Negra, e foi colaborador da informação no Programa da Manhã entre 1996 e 1997. Noutras rádios, fez outros programas históricos como Jazz com Brancas na Antena 2, Pão com Manteiga, Abandajazz ou À Volta da Meia-Noite na Rádio Comercial. Em 2014, ganhou o Prémio Autores da SPA para Melhor Programa de Rádio. Em televisão, o homem da rádio apresentou "Outras Músicas" (de 1990 a 1993,na RTP2) e "Jazz a Preto e Branco", em 2001.

Considerando-se essencialmente um divulgador, estendeu essa missão a outras atividades para além dos media. Organizou concertos em Portugal, com nomes como Steve Lacy em 1972 ou Frank Wright em 1973. No primeiro caso, o concerto realizado no Teatro Monumental, a 29 de Fevereiro, para assinalar o sexto aniversário de "5 minutos de Jazz", foi transmitido em direto na rádio e deu origem à gravação do disco Estihaços, o primeiro feito em Portugal com músicos estrangeiros de jazz, e que está dedicado a José Duarte e sua mulher, Teresa,. Ao longo de décadas, integrou equipas de vários boletins e revistas internacionais, foi consultor de festivais, colaborou na organização da Fonoteca Municipal de Lisboa.

Mesmo sabendo que o jazz nunca seria uma música de massas, o comunicador nunca desistiu. Antes pelo contrário, como revela numa entrevista ao DN, em 2016, por ocasião do cinquentenário de "5 minutos": "Tenho um vício, vou confessá-lo, que é querer que os outros gostem das músicas, dos quadros, dos filmes de que eu gosto. É isso que faço com o jazz, que é a melhor música que foi inventada no século XX. Sou um divulgador." E acrescentava: "Veja o que era o jazz quando começou o 5 Minutos. Era música de pretos. Recebi muita correspondência com palavras menos simpáticas. Mas recordo que uma vez, aqui há uns anos, em Guimarães, depois de um dos concertos anuais de jazz, eu ia para o hotel a pé e aproxima-se de mim uma senhora com um puto de 4 anos pela mão. Queria apresentar-lhe o João. Ele não se deita sem ouvir os seus 5 Minutos." Perguntei-lhe qual era o melhor músico de jazz. "Miles Davis. Que grande vitória a minha..."

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O legado de José Duarte persistirá. A sua discoteca e biblioteca estão depositados há mais de uma década no Centro de Estudos de Jazz da Universidade de Aveiro e, na RTP Play, estão à nossa disposição muitos milhares de minutos de jazz. Jazzé, como gostava que lhe chamasse, cumpriu a sua missão.

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