Cultura
13 dezembro 2023 às 00h47

"A profissão de maestro é muito desafiada quer por musicólogos, quer por jornalistas"

O finlandês Hannu Lintu é o atual maestro titular da Orquestra Gulbenkian - em paralelo com a direção da Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Na passagem por Lisboa para uma série de concertos na sua primeira temporada conversou com o DN sobre a sua vinda a Portugal.

Como é que a Fundação Gulbenkian, e a sua orquestra e coro, aparecem na sua carreira?
Sou péssimo a lembrar-me de datas, mas talvez tenha sido nos Anos 2000 que vim pela primeira vez à Gulbenkian. E sendo Risto Nieminen, o atual diretor musical da fundação [Gulbenkian], finlandês, tem bons contactos com artistas da Finlândia. Aliás, o mundo está cheio de maestros finlandeses e é fácil convidá-los. [Risos] Mas tenho a certeza de que não fui convidado apenas por isso, mas sim porque seria bom para a orquestra. Antes disso só tinha estado uma vez em Lisboa, quando participei num concurso de maestros aqui, nos Anos 1990. Vim representar o meu país, mas fui péssimo, correu muito mal e não consegui passar às finais da competição - que decorreram no auditório da Gulbenkian. Mas lembro-me de me ter divertido muito em Lisboa. Por isso tenho memórias um tanto estranhas da cidade e deste auditório. E retive a atmosfera deste local: a arquitetura, o jardim, a coleção de arte..., nós finlandeses, aliás, os escandinavos, prestamos muita atenção aos espaços e à arquitetura. Estar no meio da cidade, num edifício dentro de um parque, como este, é uma experiência tanto física, como mental. Depois tenho regressado praticamente todas as temporadas e tenho vindo dirigir coisas diferentes. Resumindo, vim para aqui por vários acontecimentos e a vida, por vezes, é uma surpresa. Foi uma boa coincidência, porque deixei de dirigir, ao fim de dez anos, a Radio Symphony Orchestra da Finlândia para ser maestro da Ópera Nacional da Finlândia, o que foi algo natural, porque a ópera foi o que me fez querer ser maestro. Contudo, ao longo do tempo, e à medida que fui dirigindo orquestras sinfónicas, percebi que precisava das duas vertentes, para me dar equilíbrio. Como as temporadas de preparação das óperas são longas, percebi que podia juntar as duas coisas e daí surgiu a oportunidade para ser maestro titular da Gulbenkian. Como conheço a orquestra e o coro, e aquilo de que são capazes, e conheço o ambiente da Fundação, vim. E, claro, vindo da escura Finlândia para aqui é quase como chegar a outro planeta.

E essa envolvência que sublinha, e a diferença de que fala em relação à sua Finlândia, influi na forma como dirige a orquestra?
Não, não, não. Se estou num dia mau, estou mal em qualquer lugar.

E sobre esta temporada, qual foi o seu papel a escolher as obras, os compositores, etc. Trabalhou em conjunto com Risto Nieminen?
Em primeiro lugar esta é uma temporada diferente, porque estou apenas a fazer cinco semanas em Lisboa. Nas próximas temporadas já estarei dez. Mas foi fácil trabalharmos juntos. Há sempre que encontrar a dinâmica entre o diretor-geral, o diretor artístico (no caso do Risto Nieminen, ele tem ambos os papéis)e o maestro titular. E tem muito a ver com a química entre essas pessoas. Temos os dois o mesmo background, no entanto ele tem mais conhecimento da música da Europa Ocidental, esteve antes em Paris, e eu conheço melhor a realidade finlandesa e norte-americana, onde vou regularmente. Por isso debatemos tudo, foi, e é, um processo de negociações interminável.

E, no seu caso pessoal, como faz as suas escolhas?
Planeio, sobretudo, tendo em conta uma longa lista de solistas com os quais gosto ou gostava de tocar. Depois tento saber quais os que estão disponíveis e peço-lhes uma lista de peças. De seguida começo a construir o resto. E, claro, este é o momento em que o diretor artístico e o diretor-geral discutem mais. No caso destes concertos recentes escolhemos a 2.ª Sinfonia de Mahler (foi tocada a 23 e 24 de novembro) porque o [Risto] Nieminen tem estado a apresentar todas as sinfonias de Mahler. E claro, nunca diria não à 2.ª Sinfonia de Mahler. Apesar de ser um pesadelo logístico, é uma das melhores composições de literatura sinfónica. E com esta maravilhosa orquestra e com um coro que é só comparável aos melhores coros da Europa, percebemos que era um cenário obrigatório.

Como maestro, tem fases com apetência para dirigir certos compositores?
Acho que as fases são mais para os compositores, mas sim lembro-me de ter feito todas as sinfonias de Mahler numa temporada, quando estava à frente da Orquestra Sinfónica da Rádio Finlandesa. Foi um esforço, uma coisa enorme. Vendemos 100% dos bilhetes, porque as pessoas adoram Mahler. Os músicos da orquestra adoram Mahler, por isso foi obviamente uma fase Mahler. Também tive um período, quando era mais jovem, durante o qual achei que precisava de absorver a obra de Beethoven, porque, provavelmente, de alguma forma, ele é o compositor que me é mais próximo. Agora, em Helsínquia, estamos a tocar o ciclo O Anel do Nibelungo, de Wagner, o que me absorve muito. E é por isso que, quando faço grandes obras de ópera, não consigo fazer programas de orquestra sinfónica ao mesmo tempo. E, claro, como já disse, quis tornar-me maestro por causa da ópera, mas, na verdade, o que acontece é que a cada ópera que faço é como se fosse a primeira vez. São sempre milhares de páginas para estudar.

No início da nossa conversa indicou que há muitos maestros finlandeses. Há razões para tal? É o ensino ou outro fator?
Pode ser da água [risos], mas há várias razões. A Finlândia, como país, não existe assim há muito tempo e por isso a nossa cultura clássica é muito jovem. A Finlândia fez parte da Rússia e, antes, fizemos parte da Suécia, fomos uma espécie de quintal, quer da Suécia e da Rússia. Quando surgiam músicos com talento iam logo para Estocolmo, ou São Petersburgo, ou mesmo para Berlim ou Paris, pela falta de oportunidades na Finlândia. A nossa primeira orquestra, a Orquestra Filarmónica de Helsínquia, foi criada apenas em 1882. Quando Mozart estava a compor ainda vivíamos em cavernas [risos], por isso a nossa tradição clássica não é muito longa, mas curiosamente sempre tivemos maestros. Como sabe a profissão de maestro não é antiga, tem entre 120 a 150 anos, mas já no século XIX tínhamos maestros. E, desde então, sempre tivemos maestros internacionais. Nomes que poucos conhecem, mas que estão a dirigir grandes orquestras nos EUA. E temos orgulho dessa tradição. Ou seja, é uma coisa muito natural ser maestro na Finlândia. E as orquestras, academias, conservatórios do país apoiam essa tradição. Um dos nossos jovens maestros, Tarmo Peltokoski, tem 23 anos e vai ser diretor da Orquestra de Toulouse no próximo ano. Claro, que uma das grandes razões foi, e é, a contribuição de Jorma Panula, o nosso famoso professor de maestros, que com 93 anos ainda continua a ensinar. As orquestras finlandesas oferecem oportunidades aos jovens maestros de trabalharem, logo desde o início, em obras de Beethoven, Brahms, ou sinfonias de Dvorák, tudo isto em pequenas orquestras nas províncias mais remotas. E, com isso, podemos ir aprendendo com os nossos erros até termos experiência para depois irmos para Londres ou Paris. São orquestras pequenas, mas muito críticas, que não têm problemas em dizer se somos bons ou maus, mas dão sempre novas oportunidades, porque faz parte do processo de educação. E isso ajuda muito. Os maestros finlandeses são uma grande família: não somos a máfia [risos], mas conhecemo-nos, falamos e partilhamos experiências.

Há um estilo próprio finlandês de conduzir as orquestras?
Não há propriamente um estilo em que parecemos iguais. Se compararmos diferentes maestros, desde Osmo Vanska a Esa-Pekka Salonen, ou Jukka-Oekka Saraste e Klaus Makela, são diferentes. E esse é o segredo do ensinamento de Jorma Panula: nunca foi sobre como mover a mão ou como deve ser movida, mas sim como alcançar um resultado musical. Acredito que a melhor forma de comunicar as nossas ideias musicais é usar os nossos próprios gestos. Na Rússia, por exemplo, têm um sistema muito específico, com certos tipos de movimento e resultados, para certos tipos de som e certos tipos de articulação. E é por isso que consigo reconhecer um condutor russo a quilómetros de distância, porque eles todos fazem as mesmas coisas. Mas é uma escola diferente. Na Finlândia não temos uma "escola" nesse sentido, mas temos similaridades na forma como trabalhamos.

Teve influências familiares para ter escolhido esta área como profissão?
Os meus pais não eram músicos e penso que nem sabiam que este tipo de profissão existia. Mas tenho a certeza de que o meu pai, que nasceu na região da Carélia, em 1929, e teve de deixar a sua terra durante a Segunda Guerra Mundial quando os soviéticos tentaram invadir a Finlândia, teve influência. Nessa área do país a música tem uma grande importância, as pessoas comunicavam muito através da música. E se, de alguma forma, tenho algum talento, deve ter vindo da parte do meu pai.
Nasci numa pequena cidade portuária na costa do oeste da Finlândia [Rauma, em 1967] e todos os meus amigos tocavam instrumentos. Quando tinha 4 anos os meus pais compraram um piano soviético muito barato e que cheirava muito mal. Foi numa altura em que a classe média finlandesa começou a progredir e começaram a ter algum dinheiro, mas o que eles não sabiam é que já conseguia tocar na altura, por ter observado os meus amigos que tocavam. E como já conseguia tocar coisas, ficaram espantados e arranjaram-me um professor. Depois fui para a escola de música e, de seguida, para um coro masculino e, daí, para o Conservatório, em Turku. Comecei a tocar violoncelo na altura, o que não foi uma grande ideia [risos], mas que me permitiu tocar numa orquestra e começar a ver os maestros e depois comecei a tocar piano. E aos 12 anos decidi que queria ser maestro, mas claro, ninguém com essa idade diz aos pais que quer ser maestro. A seguir fiz os meus estudos e depois concorri para ser maestro. Temos um sistema, na Finlândia, no qual em todas as pequenas cidades existem escolas de músicas para depois os músicos seguirem para os Conservatórios e, depois, para as academias, o que nos permite encontrar os talentos.

O que pensa dos novos compositores que misturam sons mais atuais com a música clássica. Como por exemplo faz Jonny Greenwood, que é compositor e, ao mesmo tempo, é guitarrista dos Radiohead.
Alguns desses meus colegas, que agora estão a fazer grande carreira, no fundo são conservadores, na boa noção de conservador, admiram grandes mestres como o [Herbert von] Karajan (1908-1989), e são muito ligados ao âmago da nossa profissão. Mas claro, as mentes mais modernas que querem renovar a profissão, de um certo ponto, porque trabalham muito com compositores vivos e com a música mais contemporânea...mas esta profissão é muito nova e ainda não sabemos para onde ela irá. Uma coisa é certa, já não se veem livres dos maestros. A profissão de maestro é muito desafiada quer por musicólogos, quer por jornalistas. Ou mesmo por estes jovens que dizem que devemos estar mais atentos aos sons atuais - e que, de certa forma, têm razão. Temos de estar atentos ao que se passa à nossa volta mas, ao mesmo tempo, conservar a tradição e a música que foi criada por génios e que nos dão tantas possibilidades.

Há agora uma apetência por filmes sobre maestros, com o Tár e Maestro. O que pensa disso?
Maestro é sobre a vida de [Leonard] Bernstein, e tinha de ser feito, porque a sua vida, ao contrário da da maioria dos maestros, foi muito rica. Já o Tár é algo diferente. É a reação a várias coisas, ao #Metoo, ao mundo dos agentes e da indústria das editoras discográficas. O fato de a protagonista ser mulher apenas o torna mais interessante do ponto de vista do marketing. Mas gostei muito do filme, muitas das coisas que vemos no filme são verdade.

Conhece alguma coisa da música clássica portuguesa?
Não conheço, aliás é algo que pretendo saber ao estar ligado à Gulbenkian. Penso que me podem ajudar a conhecer aquilo que se faz em Portugal. E é meu dever fazê-lo.

filipe.gil@dn.pt