Amin Maalouf: “China é uma potência em ascensão, mas ainda está muito longe de ser a número um”
LOIC VENANCE / AFP

Amin Maalouf: “China é uma potência em ascensão, mas ainda está muito longe de ser a número um”

Romancista franco-libanês, autor de 'Leão, o Africano' e 'Samarcanda', assina agora o ensaio 'O Labirinto dos Perdidos' (Marcador) sobre os países que desafiaram o domínio do Ocidente, a supremacia dos EUA. O DN falou por Zoom com Amin Maalouf que explica como a China tenta ter êxito onde japoneses e russos falharam.
Publicado a
Atualizado a

Atualmente, quando falamos do domínio do Ocidente estamos na realidade a falar da superpotência Estados Unidos da América?
Atualmente sim. Evidentemente, não era esse o caso até ao início do século XX, apesar de o continente americano ter já uma certa hegemonia desde 1820, mas no conjunto, a nível global, podemos dizer que a supremacia americana se reforçou a partir de então. No fim da Segunda Guerra Mundial era já muito clara, e provavelmente irreversível, a predominância dos Estados Unidos. Depois do fim da Guerra Fria, o elemento novo é que deixou de existir a outra superpotência e o lugar dos Estados Unidos tornou-se ainda mais claramente dominante. A questão está em saber se essa posição poderá continuar assim. Ela ultrapassou o desafio japonês, ultrapassou o desafio soviético e resta saber se conseguirá também ultrapassar o desafio chinês.

Pensa que a China tem verdadeiramente a possibilidade de se tornar a potência dominante?
Atualmente, a China não é a potência dominante. É uma potência em ascensão, que afirma a sua vontade de se tornar a potência dominante. É provavelmente a única potência que o pode aspirar face aos Estados Unidos, mas penso que devemos começar por dizer que ainda está muito distante disso. Hoje, a nível militar, a supremacia americana é muito evidente, se bem que a China está a tentar, provavelmente, reforçar o seu poderio militar. Creio que é razoável dizer que, atualmente, o atraso da China a nível militar é muito claro. Economicamente, a China é a segunda potência, mas creio que, apesar de tudo, a supremacia americana é muito grande. Existe um princípio de questionamento da supremacia do dólar, mas é simplesmente um princípio, pois o dólar continua a ser a moeda de referência no mundo e, devido à posição do dólar, os Estados Unidos têm uma vantagem enorme sobre todos os outros países. A China e outros Estados sonham mudar esta situação e acabar com a supremacia do dólar, mas ainda estamos muito longe de isso acontecer. A economia chinesa avança e avançou muito nas últimas décadas.

Portanto, a América está ainda em vantagem a nível económico, militar e científico?
É possível que, um dia, a China ganhe vantagem em certos domínios, mas globalmente ainda está atrasada. Eu diria que a posição dos Estados Unidos ainda é dominante. O modelo chinês é um modelo que aparece como um concorrente sério do americano. A China é uma potência em ascensão, mas está ainda, em muitos domínios, muito longe de poder ser a primeira potência.

Qual é a vantagem da China quando fazemos a comparação com o Japão pós-Revolução Meiji ou com a União Soviética? É o território, a população, a História?
Falemos do exemplo do Japão onde houve um fenómeno interessante, mas que se manteve um fenómeno localizado. É uma pequena nação, num pequeno território que conseguiu realizar, é preciso dizê-lo, uma sucessão de milagres. O primeiro milagre foi o de poder sair do isolamento, de desenvolver o país de forma acelerada em muitos domínios. Foi o milagre da era Meiji, entre os Anos 1860 e, diria eu, a Primeira Guerra Mundial. Houve um período em que o Japão se lançou em aventuras que não correram bem, em parte porque era um pequeno país sem recursos e que se sentiu obrigado a ir procurá-los no exterior, em parte porque havia um problema de liderança que se colocou com a morte do imperador Meiji, quando toda a equipa de ministros reformistas que trabalhavam com ele começou a desaparecer. Houve uma derrapagem internacionalista, militarista que levou ao desastre. Depois houve outro milagre que foi o milagre do pós-guerra, do desenvolvimento económico acelerado, da ressurreição económica do país, acompanhado do abandono de todas as ambições imperiais. Esse desafio japonês já não existe para os Estados Unidos. Pelo contrário, o Japão tornou-se um aliado da América, um membro da coligação ocidental. Pode dizer-se que esse desafio não foi grande, mesmo que os militares dos Anos 1940 tivessem outra visão, mas com o conhecimento que nós temos da História sabemos que o Japão não conseguiria ganhar essas batalhas. Portanto, desse ponto de vista, o desafio não era gigantesco. Na minha opinião, o desafio soviético era, esse sim, um desafio enorme. A Rússia é um país muito grande, tinha uma ideologia extremamente recente que conseguiu ganhar adeptos por todo o mundo. Se o sistema tivesse conseguido sair da rigidez ideológica institucional, se tivesse conseguido reformar-se e desenvolver-se, se tivesse sido capaz de ultrapassar a burocracia tanto no plano político, como no plano económico, que era paralisante, teria conseguido ameaçar muito seriamente a supremacia americana e ocidental. A nível tecnológico teve a aventura espacial que a certo momento deu a impressão que a União Soviética estava a ganhar; no plano militar havia uma paridade no armamento. Portanto, foi o maior desafio que existiu, mas que colapsou a certa altura. As coisas poderiam ter corrido doutra maneira, mas o facto é que colapsou e parece-me que a Rússia já não consegue representar o mesmo tipo de desafio e, a verdade, é que já não representa um modelo de sociedade alternativo, como teve oportunidade de representar em determinado momento. Quanto ao desafio chinês, eu diria que enquanto desafio ao modelo americano e ocidental ele é menos evidente do que o modelo que foi desenvolvido pela União Soviética. Penso que a China não propõe realmente outro modelo de sociedade. Existem realizações chinesas que são notáveis, mas que não podem ser transpostas para outros países, portanto não podemos ter o mesmo tipo de evolução. Não podemos mesmo dizer que a China represente hoje em dia um outro modelo de sociedade, ela representa um modelo essencialmente inspirado no Ocidente no plano económico, com restos de um modelo autoritário parcialmente herdado do sistema comunista, parcialmente ligado à tradição confucionista. Penso que é um sistema que pode evoluir, mas que não representa uma nova proposta para o resto do mundo.

A China não tem uma nova ideologia para exportar e, portanto, não tem o apelo global que teve o comunismo da União Soviética?
A China teve durante um período, a era maoista, a ilusão de poder propor um modelo. Atualmente já não tem essa ilusão. Hoje, na realidade, tenta muito mais fazer aquilo que o Japão da era Meiji fez, ou seja, tomar o seu lugar entre as grandes potências, mais do que perverter a ordem mundial. Poderá querer invertê-la, mas eu diria que todas as potências ao longo da História o tentaram, mas isso não é um novo modelo de sociedade.

Falamos muito dos Estados Unidos como representante do Ocidente. Na sua opinião, a União Europeia, sobretudo depois do Brexit, não é capaz de se tornar uma verdadeira potência?
Na minha opinião, ela deveria vir a sê-lo, mas isto é mais um desejo do que uma descrição da realidade. Penso que para isso a UE precisa de ir muito mais longe na integração política. Precisa de se tornar verdadeiramente uma potência e não está a seguir esse caminho. Acho que a opinião europeia não está desejosa, atualmente, de desempenhar o papel de potência. Há muita dissonância interna nas opiniões e mesmo que os países se entendam sobre um certo número de coisas, não é a mesma coisa que os Estados Unidos, que são uma potência e que podem tomar certas decisões. Penso que a UE não pode desempenhar um papel a nível global se não for muito mais longe e mais rapidamente no sentido da integração política.

É possível que um dia a Índia, já o país mais populoso, venha a ser um desafio para o Ocidente?
A Índia é certamente uma potência em ascensão. Não falei muito dela no meu livro porque este está limitado aos três desafios reais que foram lançados ao Ocidente. A Índia é provavelmente um desafio para o futuro e não tenho a certeza de que se vá manifestar da mesma maneira. A Índia é também, evidentemente, um país-continente com 1400 milhões de habitantes, talvez já um pouco mais que a China. É um país com realidades específicas que fazem com que não possa, jamais, transmitir o seu modelo ao resto do mundo. No entanto, tem uma capacidade de avançar, de progredir, de se desenvolver, enorme. A Índia pode, sem dúvida, tornar-se uma das muito grandes potências industriais do futuro. O país também tem tudo o que outras potências não têm, uma diáspora imensa que vemos hoje em vários exemplos. Quem é que poderia ter imaginado há algumas décadas que o primeiro-ministro britânico seria um indiano? A atual vice-presidente dos Estados Unidos tem ascendência indiana; a concorrente de Donald Trump no Partido Republicano, Nikki Haley, também é de origem indiana; muitos dirigentes das maiores empresas do mundo são de origem indiana. A presença da Índia no mundo é enorme. Portanto, a Índia é, certamente, um país que no futuro vai desempenhar um papel cada vez maior. Sinceramente, não acredito que tenha a vontade ou a capacidade de se tornar uma potência hegemónica no mundo, mas vai, com certeza, desempenhar um papel importante.

Com a guerra na Ucrânia e também a guerra no Médio Oriente podemos ver que há uma divisão entre o Ocidente e o chamado Sul Global. Vamos ter um futuro de confrontação ou será possível um futuro de cooperação entre as grandes potências, mesmo entre a China e os Estados Unidos e até, um dia destes, com a Rússia?
Penso que todas as possibilidades estão abertas. Os Estados Unidos e a China são países rivais e, ao mesmo tempo, são parceiros económicos muito importantes. Portanto, mesmo combatendo-se, sabem também que têm interesses comuns e que não podem ir demasiadamente longe no conflito. Existe o risco de derrapagem do conflito, mas há também coisas que o podem travar e encorajar a que trabalhem em conjunto. Quanto ao Sul Global, é um nome, mas não existe uma potência que seja o Sul Global. No Sul existem toda a espécie de países, mais ou menos grandes, que têm interesses muitas vezes diferentes e que têm, hoje, uma certa desconfiança em relação ao Ocidente. Na minha opinião, não devemos considerar que essa atitude vá desembocar forçosamente em confrontos. Creio que as crises existentes estão no essencial ligadas a fenómenos locais, e a situação global, situação a que podemos chamar uma nova Guerra Fria, encoraja a polarização que torna essas crises muito mais complexas e muito mais difíceis de resolver. As crises nascem com a realidade e a realidade resolvê-las-á. O conflito na Ucrânia é evidente e o do Médio Oriente também. São crises que estão lá desde há muito, há várias décadas, e que atualmente estão ligadas, em parte, ao confronto com o Ocidente e os seus adversários, mas isso é só um aspeto, no essencial existe a realidade local que fez com que esses conflitos durem desde a primeira Guerra Fria e que continuem com a segunda Guerra Fria.

No seu livro fala da América como herdeira do Império Romano. Há muita simbologia no país que realmente recorda a Roma Antiga. Esta ideia da América como uma nova Roma é algo que existe desde o primeiro momento da independência, declarada em 1776. Qual é a origem dessa simbologia?
Creio que muitos dos pais da independência eram grandes conhecedores da História romana - o Capitólio, por exemplo, é tipicamente um símbolo romano. Com o aparecimento da República Romana há uma desconfiança em relação aos reis que se manifestou e que estava presente nos Estados Unidos, sobretudo relativamente ao rei de Inglaterra, mas em geral também ao princípio da realeza. Portanto, também aí se identificaram muito com os romanos. Depois, à medida que os Estados Unidos ocupavam um lugar dominante no mundo, não podiam deixar de se identificar com Roma, porque no nosso imaginário e na nossa memória, o grande império que desempenhou um papel global antes da era Moderna foi o Império Romano. Os EUA, de certa maneira, são os herdeiros também das fraquezas do Império Romano, que tinha as suas crises tal como os Estados Unidos as têm também, com todas as guerras longínquas que por vezes acabam em desastre - Afeganistão, Vietname… Na verdade, existem muitas semelhanças.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt