Estivemos com Pedro Almodóvar em Veneza e não houve vaga para um encontro. No festival seguinte, o de San Sebastián, o mestre espanhol também não quis dar entrevistas para promover este sua primeira longa-metragem nos EUA. Melhor, não quiseram que ele falasse. Pois bem, no mês passado, no conforto do seu escritório em Madrid, fez um clique no botão do Zoom do seu computador e apanhou com uma maratona de jornalistas dos quatro cantos do mundo. Ao DN calhou uma mesa redonda virtual com alemães, polacos, dinamarqueses e franceses. Menos mal, deu para fazer algumas perguntas e, por entre os delays das perguntas e respostas, ouvir alguns dos pensamentos deste grande criador artístico espanhol..“No início não estava tão familiarizado com a escrita em inglês e isso a nível de pensamento e de expressão fez-me alguma confusão, mas depois da rodagem começar já não aconteceu nenhum problema pois compreendi o tom e o gesto das atrizes. Aí, nessa fase, já não senti diferença alguma. Convém dizer que ensaiámos muitas vezes, já sabia de cor todos os diálogos”, começou por dizer em castelhano..Entre o castelhano e o inglês.Ainda na sua língua materna responde quando o confrontamos com o sorriso que estava em San Sebastián, quando recebeu a Concha de carreira, precisamente no dia do seu 75.º aniversário - será que é um cineasta feliz com toda esta aclamação mais recente, ele que sempre foi o nome do cinema espanhol mais vendável e respeitado? “Estou num momento em que estão a coincidir uma série de coisas dignas de celebração, admito… Primeiro o Leão de Ouro, duas semanas depois o prémio Donostia no meu aniversário, enfim: as tais coincidência positivas. Mas o que mais me impressionou e emocionou foi a reação do público ao meu filme na sala em San Sebastián. Era muito patente que a película emocionou as 3 mil pessoas presentes. Aplaudiram não sei quanto tempo… Essa foi a melhor sensação do meu aniversário, logo eu que não gosto de comemorar os meus anos. Vou guardar para sempre essa receção tão calorosa!”..Figura pop incontornável, Pedro Almodóvar torna-se cada vez mais um ícone da cultura ibérica. 2024 está a ser um dos anos mais dourados da sua carreira: O Quarto ao Lado, depois do triunfo em Veneza, foi ao Festival de Nova Iorque como “center piece” e parece estar bem lançado também nas contas da temporada dos prémios. Estamos então na fase de uma outra consagração, neste caso com a experiência americana, sendo que neste encontro confirme: o próximo filme será de novo em Espanha, chama-se Amarga Navidad..A morte fica-lhe bem.E se O Quarto ao Lado é um compêndio sobre saber aceitar a morte, Almodóvar não se esquece de quando começou a refletir sobre a mortalidade: “Foi aos dez anos depois de uma educação cristã que deu para o torto. O meu convívio com os padres fez-me perceber que não podia acreditar em Deus. Sou como a personagem da Julianne Moore: a morte é algo complicado de aceitar e de a assumir de forma inteligente. Não tenho aquele suporte que os católicos têm em relação à morte…Tenho dificuldades em aceitar a morte e tenho medo dela”. Contudo, nunca antes a morte no seu cinema O teve este lado de tragédia perto de um certo apaziguamento. Sim, The Room Next Door está do lado da eutanásia… “De onde vim, na Mancha, na minha aldeia, há toda uma cultura em torno da morte, em especial junto das mulheres que criaram uma série de rituais que passam às filhas. Infelizmente, não passaram aos filhos. Já tinha abordado isso em Voltar”, prossegue, aludindo que é também por isso que se assume como homem sem fé: “não podes adquirir fé. A fé é um presente que te dão. Por isso, estou só perante a morte, mas este filme ajudou-me a ficar mais acostumado à ideia da morte e da minha mortalidade. Fiquei mais familiarizado com este tema! Além do mais, não acredito na reencarnação, apesar de haver um momento no fim do filme que parece jogar com isso”...Para quem pensa que o filme é um dramalhão funesto sobre a morte, é o próprio cineasta quem sabiamente diz o contrário: “Trata-se de saber ver o melhor da vida no meio do apocalipse, os momentos de alegria e todos nós temos de prestar atenção a isso. Diria que O Quarto ao Lado é uma celebração da vida”. Não é blague, são palavras sinceras sobre um filme que é também um jogo com aquilo que Persona, de Bergman propunha..A questão do festival cromático.Mas se Bergman nessa obra-prima filmava a preto e branco, aqui as cores são importantes, parte fundamental de um certificado de conto cromático. Perguntamos-lhe se tinha certezas nas suas intuições e a resposta demora a surgir: “Nunca tenho certezas absolutas, vou tentando experimentar. A nível cromático a primeira decisão que tomei foi relativa ao chão. Temos muito planos em que se vê o chão. Também importante os móveis, mas neste filme tive muito cuidado com as cores, sobretudo nas roupas delas e na forma como seriam vistas nos sofás… Trabalho como um pintor, vou vendo como resultam diversas cores. Claro que depois de decidir uma , as atrizes chegam ao local, sentam-se no sofá e surgem surpresas. Dedico muito tempo na composição das diferentes cores que se veem nos meus filmes, é um processo deveras demorado. Sou um pesadelo para o diretor de arte! Por exemplo, precisamos de uma mesa e em vez de pedir só uma peço uma data delas. Estou sempre a mudar até descobrir a composição que quero. No geral, prefiro as cores fortes. Num filme tão negro e sobre a eutanásia como este, tentei ser mais austero pois não queria seguir pelo melodrama e pelo lado sentimental. A minha própria câmara tentou ser mais austera, passou ainda pelo tom das atrizes. A única coisa que não mudei foi a luz das cores, nesse sentido não quis fazer um filme tão negro, antes pelo contrário, quis que estivesse cheio de luz e de vitalidade. Em boa verdade, estas são as cores que amo e são remanescentes com a personagem da Tilda. Quando ela decide sobre a sua existência está a ter um ato de liberdade”..Pensar para a frente.Voltando à questão de toda esta aclamação que está a receber por esta sua nova obra-prima, garante que não olha para o passado: “Estou apenas concentrado no futuro e no presente. Aquela satisfação que falei há pouco nada me dá. Claro que estou muito contente com todos os filmes que fiz, mesmo que goste mais de uns do que de outros. Estou agora a pensar no meu próximo filme e nos que poderei fazer enquanto estou vivo. Filmo há 44 anos e toquei em muitos temas, confesso até que gostaria de prestar mais atenção ao que fiz. Gostaria de um dia ter tempo para analisar o meu trabalho, mas apercebo-me que a minha jornada é o imediato”.