Alice dos Reis: “Parte do meu trabalho serve um propósito quase psicanalítico”
Alice dos Reis vai a meio de um doutoramento de quatro anos em Creative Media na City University de Hong Kong e é a partir de lá que ela com o DN sobre o seu trabalho artístico. A conversa decorre depois de ter ganhado o Prémio Novos Artistas Fundação EDP com a videoinstalação composta por um filme – Oh Be a Fine Girl Kiss Me – e uma tapeçaria em quatro partes intitulada Freiras caminham de madrugada, meio- dia, crepúsculo e noite, que está exposta no MAAT Central, em Lisboa. Trata-se de uma obra narrativa que cruza elementos autobiográficos, história, ciência e ficção científica e em que os diferentes meios se potenciam mutuamente. A tapeçaria, representando freiras, algumas grávidas, e gatos (elementos ligados ao corpo e à reprodução que aparecem em obras anteriores da artista), guia para o filme.
A curta metragem de sete minutos é uma espécie de “documentário ficcional” poético em torno de um acontecimento histórico – quatro freiras que no início do século XX ajudaram a mapear os céus no Observatório do Vaticano –, em que a alma de uma das religiosas pondera a reincarnação como programadora no Portugal dos anos 1990 em que a economia florescia, numa reflexão sobre as escolhas de vida e a forma como são condicionadas pelos sistemas modernos.
Em 2021, Alice dos Reis realizou uma exposição individual na galeria Kunsthalle Lissabon – Para a Vida uma Doença de Cobre – em que parte da história de vida da sua avó, que foi operária numa farmacêutica que fabricava pílulas nas décadas de 1960 e 1970, para investigar o processo de desenvolvimento dos contracetivos e problematizar temas como o controlo da natalidade e as questões de género.
O trabalho que está a fazer agora, em Hong Kong, segue a mesma linha. “Posso dizer que estou a continuar a trabalhar a tapeçaria e o filme com preocupações, imagens e símbolos que têm surgido em trabalhos anteriores. Particularmente, e também é um ponto de foco do doutoramento, estou a olhar para a lactação, especificamente a lactação não-reprodutiva, ou seja, para o processo de lactação que não envolve a alimentação de um bebé. Estou a olhar para diferentes vertentes e histórias globais que têm a ver com isso. Estou interessada na história da ciência relacionada com a lactação”, revela ao DN.
O interesse nasce do seu corpo. “Surge da minha própria história médica e da necessidade de a compreender melhor. Eu tenho prolactinemia, tenho um pequeno tumor no cérebro, na hipófise, que leva a um desequilíbrio hormonal e especificamente da prolactina. E eu produzo leite sem estar grávida. Tenho que tomar medicação para controlar este desequilíbrio. E isto levou-me a uma certa curiosidade sobre a história deste sintoma. E como é que a lactação pode ser pensada fora do contexto da maternidade, por exemplo.”
Alice dos Reis diz que o móbil da sua produção artística são “tendências ou ansiedades. Palavras que talvez sejam mais honestas sobre como é que estas questões surgem. Elas não surgem de modo muito consciente mas quase de forma inconsciente e por necessidade. Fazem-se surgir. E é um mistério para mim porque é que eu acabo por gravitar em volta de algumas destas questões. Parte do meu trabalho serve um propósito quase psicológico ou psicanalítico que eu não controlo”, sublinha.
Sobre o seu processo criativo, diz ainda: “Eu posso estar a pensar sobre sistemas de crença por razões pessoais, mas depois há uma história qualquer, pela qual passo, ou que se me atravessa, que fala ou ecoa essas preocupações. Isso também me faz sentir menos sozinha, por vezes. Ir à procura de indícios de coisas que aconteceram, que podem ecoar com o que me preocupa no momento presente, mas que também o problematiza. A história pode problematizar o presente e o presente também problematiza o passado”.
A investigação subjacente ao eu trabalho, frisa, é “uma pesquisa artística, não é uma pesquisa académica. É muito mais intuitiva, muito mais misteriosa”.
A artista, que se licenciou em Arte e Multimédia pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, e tirou o mestrado em Belas-Artes no Sandberg Instituut, em Amesterdão, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, pretende continuar a trabalhar com tapeçaria e filme. “Eu estudei têxteis na Escola António Arroio e essa linguagem deixou de fazer parte da minha prática, esteve fora do meu radar durante muitos anos. Fui muito atraída para a linguagem do cinema, da imagem em movimento. E esse aspeto do meu trabalho tornou-se mais central”, explica. Até ao ano em que a pandemia abalou o mundo. “Foi durante a covid, após a realização de um filme, que foi bastante duro enquanto processo, que eu senti que tinha de dar um passo atrás e olhar para o que é que me interessava realmente fazer daí para a frente. Por um acaso, foi uma senhora, dona de uma retrosaria em Lisboa, que me incentivou a voltar a pegar nos têxteis. E eu comecei a fazer tapeçarias primeiro em needlepoint, e depois voltei mesmo à tapeçaria tradicional”.
Para Alice dos Reis, a tapeçaria é um lugar muito meditativo”, permite “deixar a mão ir, deixar a peça acontecer”. No entanto, aponta, há um ponto de ligação entre a tapeçaria e o filme. “A nível conceptual há uma lógica que aproxima bastante a tapeçaria ao cinema, ou à imagem em movimento. Eu penso de forma narrativa. Uma coisa que eu aprendi sobre mim própria é que não consigo pensar de forma abstrata, é muito difícil. Penso em histórias, em inícios, meios, fins, ciclos.”
E tanto a tapeçaria como o cinema permitem-lhe contar histórias. “Nos filmes eu consigo trazer narrativas que se concretizam de forma mais linear. E fazer tapeçarias à medida que vou fazendo estes filmes, permite-me trazer personagens e imagens que potenciam as histórias dos filmes, mas não de forma direta ou tão linear.”
A base narrativa da sua produção artística, diz Alice dos Reis, é bem visível na obra que lhe valeu o Prémio Novos Artistas Fundação EDP. “Quem for ver o meu trabalho no MAAT vai sentir isso, porque é mesmo sobre ciclos, sobre narrativas que se repetem ou que se acumulam. E a tapeçaria também é tradicionalmente um medium narrativo. Se formos ver as tapeçarias do século XIII em França, temos a tapeçaria de Bayeux, que são 70 metros de batalhas francesas .”
Neste momento, adianta a jovem artista, está a trabalhar numa sequência de tapeçarias de médio formato e a escrever um guião para um novo filme. Não necessariamente relacionados”.
A faceta de realizadora – as suas películas já foram exibidas em festivais de cinema como o IndieLisboa, DocLisboa, Curtas Vila do Conde e Sheffield DocFest– é para continuar. “Sim, tenho essa ambição. Eu faço filmes que funcionam tanto em contextos de arte contemporânea como do cinema. Tal como outros realizadores – temos vários exemplos emPortugal – vamos tocando nestes dois mundos, que se vão diluindo cada vez mais.”
Alice dos Reis vive e trabalha fora de Portugal há alguns anos e não se vê a regressar, mas diz que o seu trabalho tem sido reconhecido no país, tendo exposto no Museu de Arte Contemporânea de Serralves e em galerias em Lisboa e Porto. Em 2019 foi a vencedora do Prémio Novo Banco Revelação e agora o Prémio Novos Artistas Fundação EDP vem contribuir ainda mais para essa afirmação. Trata-se de um prémio ganho em edições anteriores por artistas que hoje são consagrados a nível nacional e internacional, como Joana Vasconcelos – que ganhou a primeira edição, em 2000 – Carlos Bunga (2003) ou Diana Policarpo (2019).
“Este prémio é muito significativo, é um prémio que já é histórico. Permite-me continuar essa ligação com Portugal, sempre foi uma ambição do meu percurso enquanto artista portuguesa. Sinto-me muito afortunada. Apesar de tudo, o meu trabalho tem sido sempre bem recebido em Portugal e eu tenho tido oportunidades.”
À 15ª edição do prémio da Fundação EDP, que é bienal, concorreram mais de 800 novos artistas. Após um processo de seleção, foram escolhidos seis finalistas. Além de Alice dos Reis, chegaram à fase final Evy Jokhova, Francisco Trêpa, Inês Brites, Maja Escher e Sara Chang Yan. A obra Entre Vidas de Alice dos Reis foi a preferida do júri, que incluiu Nuria Enguita, diretora artística do MAC/CCB, François Piron, curador do Centro de Arte Contemporânea Palais de Tokyo, e o artista plástico Francisco Tropa.
No anúncio do vencedor da edição de 2024, no passado dia 26 de junho, o júri destacou “a narrativa criativa forte que conjuga uma imaginação histórica, social e poética com uma dimensão pessoal muito interessante, e um vocabulário próprio que explora diversos media”.
A exposição no MAAT Central que reúne as obras destes seis artistas pode ser visitada até dia 8 de setembro.