Katherine Vaz esteve em Lisboa a promover 'A Linha do Sal'. Aqui fotografada na livraria Buchholz.
Katherine Vaz esteve em Lisboa a promover 'A Linha do Sal'. Aqui fotografada na livraria Buchholz.Paulo Alexandrino/Global Imagens

“Ainda há descendentes de madeirenses em Jacksonville, Illinois, e ficaram surpreendidos por eu contar a história deles”

Em Lisboa para promover A Linha do Sal (Asa), Katherine Vaz falou ao DN de como teve a ideia de contar a história de um grupo de madeirenses convertidos ao protestantismo expulsos da ilha em meados do século XIX e acolhidos no Illinois no tempo de Lincoln. Uma história de imigração, mas também de amor e guerra.
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Foi há muitos anos, durante uma palestra na Biblioteca do Congresso, em Washington, que tropeçou na história dos protestantes portugueses do Illinois. Foi nesse momento que nasceu a ideia para este A Linha do Sal?
Sim, tropecei mesmo na história. Eu estava a fazer uma apresentação na Biblioteca do Congresso, em Washington, e estavam a gravar o meu trabalho para os arquivos na divisão hispânica - eu fui a primeira luso-americana a ter o meu trabalho na Biblioteca do Congresso. E a minha querida amiga Iêda Siqueira Wiarda disse-me que havia uma exposição interessante na Sala dos Mapas que eu devia ver. Chamava-se Portuguese Protestants of Illinois. Falava de uma história pouco conhecida. Pelo menos na América, mas, como percebi mais tarde, também não muito conhecida em Portugal. Portanto, dentro do meu compromisso de escrever histórias para um público anglo-saxónico acerca do contributo dos portugueses na América, pensei, é isto. Não fazia ideia é que ia demorar 15 anos a fazê-lo. Foi um longo e tortuoso caminho para descobrir esta história, que foi inspirada na história verídica deste povo da ilha da Madeira que se converteu ao presbiterianismo no século XIX. Houve confrontos religiosos e eles foram expulsos da ilha. Por incrível que pareça, foram adotados pelo Estado do Illinois, na época de Lincoln. É também uma história de generosidade americana - eles receberam terras, empregos. É verdade que eram um grande grupo de eleitores para o partido de Lincoln. Eram todos abolicionistas. Portanto, estes madeirenses foram usados para contrariar a chegada de democratas do Sul [esclavagistas] ao Illinois. Houve generosidade mas também interesse - as coisas são sempre complexas. Depois deparei-me com este homem chamado John Alves, que, já idoso, regressou à casa de Lincoln. E ficou tão emocionado ao lembrar-se da mulher que cortejou naquela casa que as suas mãos tremiam tanto que não conseguiu assinar o livro de visitas. Quando eu estava a fazer pesquisas no Illinois, perguntei: podemos tirar o livro de visitas do cofre? E foi exatamente como ele descreveu, o que me disse que ele era uma pessoa honesta. Então senti-me obrigada a seguir a pista. John foi para a Guerra Civil, voltou e deu uma entrevista a um jornal quando já era velho. Não disse o que aconteceu quando voltou da guerra, mas sabe-se que vagueou pelo Oeste durante décadas. Como romancista, a tela é esse espaço em branco - o que lhe aconteceu? Era um homem que vinha de uma pequena aldeia da Madeira, cresceu na prisão com a mãe, acusada de heresia. E de repente está sentado à mesa de Abraham Lincoln, que já naquela altura era conhecido como “The Great Man”. Foi o que ele, anos mais tarde, lhe chamou no artigo de jornal que eu li. E fui encontrando vestígios. Cheguei aos seus documentos da Administração de Veteranos onde ele colocou Nova Iorque como cidade natal, porque foi a sua porta de entrada nos EUA, e eu achei fascinante. Ele não escreveu Madeira, escreveu Nova Iorque. Então pensei, que tipo de pessoa faria isso? Quem diria: eu nasci noutro sítio, mas a minha nova vida nasceu ali? Enfim, foi um longo caminho, mas 15 anos depois aqui está o livro, e agora chegou a Portugal. 

Exigiu uma pesquisa muito longa…
Sim, Madeira, Illinois. Consegui uma bolsa de ensino lá para um semestre. É ótimo pesquisar no computador e descobrir todo o tipo de coisas, mas pesquisar também é ir aos lugares e surpreender-se. Conheci muitas pessoas lá. Um dia, numa biblioteca onde fui, um senhor tinha uma placa com o nome de Steven Goveia. Então cheguei ao pé dele e perguntei: por acaso é descendente dos protestantes portugueses do Illinois? E ele respondeu que trabalhava ali há décadas e que eu era a primeira pessoa a fazer-lhe essa pergunta. E apresentou-me muitos dos descendentes que ainda vivem na zona de Jacksonville, Illinois, chamada Madeira Hill ou Portuguese Hill. Estas pessoas ficaram surpreendidas por eu estar a contar a história delas e eu fiquei surpreendida pela quantidade de cartas que recebi de leitores a dizer: “Oh, meu deus, nunca li nada assim acerca do meu bisavô. Ele era uma dessas pessoas.” São pessoas que já não têm necessariamente nomes portugueses. Portanto é uma história que está um pouco enterrada, mas acho que é um contributo importante acerca da imigração num momento crucial para os EUA, como foi o da Guerra Civil. Houve também uma enorme experiência social. Jacksonville, que acolheu muitos exilados, era um local de promoção das artes, da educação para as mulheres, tinha instituições de caridade para ajudar surdos, cegos e pobres. Já Springfield tinha ferrovias, política, individualismo. As duas cidades foram palco de uma espécie de batalha pela alma do país que continua até hoje.

A Linha do Sal é a história dos protestantes madeirenses expulsos da ilha, das disputas religiosas com os católicos, mas é também uma história de amor. Até que ponto é uma história verdadeira? John Alves, por exemplo, existiu…
Sim, existiu e a história é inspirada nele, mas é um romance. É preciso ser preciso, pois não podemos colocar fechos de correr no século XIX, não existiam. Mas o que aconteceu quando ele voltou da guerra devastado? Porque andou a vaguear pelo Oeste? Como romancista, cabe-me preencher o que aconteceu. Porque a estória da História é a história das pessoas. O livro demorou tantos anos a escrever que em alguns momentos tive de parar e pensar: não se trata de acabar de editar 50 páginas, trata-se de voltar a apaixonar-me pelas personagens. Eu tive de fazer isso. Por vezes é preciso dar um passo atrás e recordar por que decidimos fazer aquilo. Neste caso foi para honrar aqueles imigrantes da Madeira que são tão mal conhecidos. E não se trata de um pequeno grupo, estamos a falar de algumas centenas, segundo as estimativas mais baixas, até dois mil, segundo as mais altas. 

John Alves existiu mesmo, e Mary Freitas?
Ele mencionou alguém chamado Mary Freitas, o que em Portugal é um nome muito comum. Além disso, é muito mais difícil localizar uma mulher, porque casam, mudam de nome. E depois há o Edward, porque na verdade é um triângulo amoroso.

Pobre Edward, o homem com quem Mary casa, apesar de amar John…
Sim, pobre Edward, não se fala dele o suficiente. É um tipo à frente do seu tempo, meio solitário, e tem a sua própria história de amor. Tem defeitos e, como se costuma dizer, é bom no papel. Eu trabalhei muito para acertar na personalidade do Edward. Tinha de ser atraente, mas não podia ser tão perfeito que o leitor achasse que Mary devia esquecer John e ficar com ele. Tinha mais dinheiro, era capaz de perdoar quase tudo. Mas ela não estava apaixonada por ele. E eu trabalhei muito para lhe arranjar uma complicação credível - um caso amoroso.

Como dizia há pouco, John conheceu Lincoln, combateu na Guerra Civil. Foi importante para si que esta personagem decidisse lutar pelo país que o acolheu?
Estava fora de questão que ele não o fizesse. Houve madeirenses que não combateram, que ficaram em casa. No início da guerra não, mas mais tarde era possível pagar 300 dólares para não combater - o que não época era muito dinheiro. Mas John sentiu que tinha de combater por este país. E esteve em algumas das piores batalhas da Guerra Civil. Isso é factual. Shiloh, Vicksburg e o Meridian Raid. Eu não sou especialista em Guerra Civil. A maior parte dos americanos já ouviu em Shiloh e talvez em Vicksburg, mas no Meridian Raid não. O Meridian Raid foi uma experiência antes de o general Sherman iniciar a Marcha para o Mar, que passou por destruir a cidade de Meridian. Para mim, como romancista, a questão era entender como seria para um rapaz como John, cuja casa na Madeira fora queimada quando eles estavam a fugir, ser intimado a queimar as casas de civis. 

A cena com Lincoln está cheia de pormenores. Até tem um bolo cor-de-rosa…
Tinha de usar o facto de ter descoberto que a cor fúcsia, o colorante alimentar cor-de-rosa, era produzido esmagando os corpos de uns insetos, as cochonilhas. Era demasiado maravilhoso para não usar no livro, por isso temos bolo cor-de-rosa. Quando fui à Biblioteca Presidencial Abraham Lincoln e disse que era escritora e queria ver o livro de visitas, eles ficaram muito contentes por eu não estar a pesquisar sobre genealogia, por não estar à espera que o meu tataravô tivesse sido um dos homens que carregou o caixão de Lincoln. E então foram buscar uma quantidade de coisas ao cofre e voltaram com o livro de receitas da Mary Todd Lincoln, que tinha as páginas coladas com açúcar na zona das sobremesas. Ela era viciada em açúcar e eu quis manter isso na personagem. São esse tipo de detalhes que tornam uma personagem credível. Lincoln, por exemplo, é uma personagem tão poderosa. Aparecia em mais algumas cenas, mas a minha editora, Megan Lynch, achou melhor ele só fazer um cameo. Ele é tão poderoso que se aparecesse mais ia dominar as coisas, apesar de, na realidade, ser um homem muito humilde, divertido e inteligente. Por exemplo, a história de ele ter, como advogado, defendido um madeirense é verdadeira. É uma das bênçãos de podermos fazer pesquisa sentados ao computador - podemos ter acesso aos livros de contabilidade de Lincoln, podemos consultar os seus processos. E defendeu um madeirense que era acusado pelo cunhado de ter sangue africano para o impedir de possuir propriedade. Lincoln ganhou o caso do madeirense, mas sugeriu-lhe que desse a maior parte ao cunhado para que ele retirasse o seu nome desses registos. O que é uma história horrível, mas que prova que Lincoln interagiu com a comunidade madeirense

O pai da Mary chama-se Augusto e tem Vaz no nome. É um piscar de olho ao seu próprio pai?
É, sim. O meu pai morreu quando eu estava a escrever este livro. O pai da Mary tinha outro nome, mas dei-lhe o nome do meu, de quem era muito próxima. Foi muito difícil perdê-lo. Sempre que eu queria desistir deste livro, ele insistia que o terminasse. Por isso chamei Augusto e meti Vaz no nome da personagem.

E é jardineiro…
O meu pai era um jardineiro maravilhoso. Não era profissional, mas era muito bom. Há muito dele na personagem, e sobretudo na relação dele com Mary - é a relação que eu tinha com o meu pai. 

Já me contou que o seu pai e as histórias dele foram a razão que a levou a ser escritora…
Ele criou em mim a ideia de que havia este vazio na paisagem literária americana em termos de histórias portuguesas. Os meus contos passam-se na maioria na Califórnia, mas a ideia é essa. Os meus leitores não conhecem essas histórias. 

O seu pai nasceu nos Estados Unidos, regressou aos Açores e acabou por voltar…
A mãe dele morreu pouco depois do parto e o meu avô levou-o de volta para os Açores, onde ele foi criado. O português era a primeira língua do meu pai. Depois o meu avô voltou a casar e regressou à Califórnia.

Portanto, a Katherine cresce a ouvir as histórias portuguesas, açorianas?
Exatamente, havia uma grande comunidade portuguesa no Norte da Califórnia. E era diferente da da costa leste. Ali trabalhavam no setor dos laticínios, nas fazendas. O meu avô trabalhava nessa área, mas o meu pai foi a primeira pessoa da família a ir para a universidade. Estudou na Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi um professor de liceu muito amado. Ainda hoje recebo cartas de antigos alunos dele e é muito comovente.

Essa temática portuguesa está sempre presente na sua obra, desde Saudade a Mariana passando por Our Lady of the Artichokes. Como é que os americano reagem a estas temáticas tão portuguesas?
Tem sido muito gratificante. A maioria dos meus leitores são pessoas que não são descendentes de portugueses e estão muito gratos por eu abrir este mundo para eles. Estou agora em Lisboa para o programa literário Disquiet, onde sou responsável pela experiência Writing the Luso. O programa tem pessoas de origem brasileira, africana, portuguesa. É um terreno fértil, mas não tem sido muito cuidado. Portanto, acho que tive um grande papel em ajudar a próxima geração de escritores. 

O seu livro Mariana foi agora reeditado em Portugal. A história da freira Mariana Alcoforado, que se apaixona por um soldado francês no século XVII, é tão universal e intemporal que funciona com qualquer audiência, em qualquer momento?
Sim, porque é uma história real. E as pessoas não têm noção de que naquela altura as raparigas e as mulheres eram mandadas para um convento mesmo contra a sua vontade. Por outro lado, ali recebiam uma melhor educação e, de certa forma, tinham mais liberdade do que as mulheres casadas. Estamos a falar de jovens de famílias abastadas, muitas vezes tinham pais que não queriam dividir as propriedades entre vários genros, outros que queriam dar uma filha a Deus. Mas se fizer uma visita ao convento em Beja onde Mariana viveu vão dizer-lhe que algumas das jovens até faziam desfiles de moda e usavam joias. Acho que as pessoas ficam chocadas com esta realidade, com este paradoxo de as mulheres nos conventos acabarem por ter mais liberdade do que as mulheres cá fora, que tinham de cuidar de um maridos e da família. 

Demorou 15 anos a escrever A Linha do Sal. Já está a trabalhar em algum novo projeto?
Estou a trabalhar no meu primeiro guião, uma adaptação de Our Lady of the Artichokes. Estou a trabalhar com uma mentora, que é argumentista e encenadora, que está a dar-me muita orientação. É um estilo de escrita muito diferente e eu quis desafiar-me. É uma escrita mais visual, mais limpa. Quando estou a tentar voltar à escrita e descobrir o que vem a seguir, normalmente escrevo contos. Tenho estado a trabalhar na história da amizade entre duas raparigas, mas ainda não sei para onde vai ou o que vai acontecer com elas. Mas não vou com certeza trabalhar durante 15 anos no próximo livro [risos]. 

A Linha do Sal
Katherine Vaz
Asa
528 páginas

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