Fernanda Torres, ou a intimidade de uma personagem.
Fernanda Torres, ou a intimidade de uma personagem.

'Ainda Estou Aqui'. Isto não é uma telenovela

Centrado numa notável interpretação de Fernanda Torres, 'Ainda Estou Aqui' revisita as memórias do tempo da ditadura militar brasileira através de uma narrativa de tocante intimismo - é, por certo, o melhor momento da filmografia do realizador Walter Salles.
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Não é todos os dias que deparamos com um filme brasileiro capaz de se demarcar, ponto por ponto, da formatação narrativa, tendencialmente moralista, das telenovelas. O caso de Ainda Estou Aqui é tanto mais contagiante, quanto a realização de Walter Salles consegue consumar um efeito narrativo que a telenovela menospreza, optando por um grosseiro maniqueísmo dramático. A saber: esta é uma viagem até ao fundo do drama familiar mais intimista, sem nunca esquematizar a sua contextualização histórica e política.

O ponto de partida é o livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva, recentemente lançado entre nós (Publicações Dom Quixote, 2025). São memórias do casal Rubens Paiva/Eunice Paiva, dos seus cinco filhos (Marcelo e quatro irmãs) e, em particular, do período em que o Brasil viveu sob o jugo de uma ditadura militar (1964-1985).

O deputado Rubens Paiva foi preso em 1971, torturado e morto. Em boa verdade, depois das cenas de abertura, em que descobrimos uma família capaz de inventar um espaço feliz de muitas cumplicidades, é Eunice Paiva que se transfigura em imponente personagem central, numa composição de puro génio de Fernanda Torres - já distinguida com um Golden Globe (drama), ela é apontada como uma das mais sérias candidatas ao Óscar de Melhor Atriz, não sendo arriscado supor que, no mínimo, tem uma nomeação garantida.

Seja como for, evitemos ceder ao lugar-comum (telenovelesco, precisamente) que confunde a simples “identificação” de uma conjuntura política repressiva com um verdadeiro trabalho narrativo. Ainda Estou Aqui pode até servir de lição pedagógica a algum cinema português (e a muitas narrativas televisivas) que se limitam a promover “reconstituições” maniqueístas de uma determinada conjuntura política, sem conterem o mais pequeno pensamento sobre o que seja tratar uma personagem de acordo com uma perspetiva psicológica que nunca deixe de ser subtilmente política - e também, por isso mesmo: compreender como as componentes políticas atravessam os espaços e comportamentos privados.

Nascido em 1956, no Rio de Janeiro, Walter Salles não é, obviamente, um nome do Cinema Novo brasileiro, esse movimento criativo visceral marcado por autores como Glauber Rocha, Carlos Diegues ou Joaquim Pedro de Andrade. Ainda assim, a sua visão renova e relança uma energia realista que, de uma maneira ou de outra, pontuou o trabalho desses cineastas (lembro apenas o exemplo modelar de A Grande Cidade, longa-metragem de 1966 assinada por Diegues).

Daí o estranho e fascinante paradoxo que caracteriza a metódica construção de Ainda Estou Aqui: por um lado, esta é a tragédia de um país sujeito a uma ditadura implacável; por outro lado, a câmara de Walter Salles, ágil e rigorosa, confronta-nos com um “documento” vivo, à flor da pele.

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