"Há em Agnès Varda uma poética que se confunde com uma política do quotidiano. Interessa-lhe tudo o que, a um olhar mais desatento, não tem interesse, interessa-lhe o que dificilmente se vê, o resíduo, o rejeitado ou marginalizado, a pequena história, interessa-lhe interrogar a singeleza dos objetos pessoais ou desconhecidos que nos contêm ou nos rodeiam", assim descreve António Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO), a essência da ação "amadora" da belga que se radicou em França, aí deixando a sua pegada artística. O texto intitula-se, muito adequadamente, Elogio da Curiosidade, e está no livro Agnès Varda: Luz e Sombra, um belíssimo volume bilingue que acompanha a exposição patente no Porto até janeiro de 2023..Acrescentar-se-ia apenas, na ideia relativa aos objetos, as pessoas. Varda definiu-se como uma cineasta do amor pelas "pessoas reais" (expressão da própria). Algo que se observa de modo exemplar na sua segunda longa-metragem, Duas Horas na Vida de uma Mulher (1962), quando a atriz Corinne Marchand, depois de uma sessão de tarot que lhe lança um prenúncio de morte, atravessa as ruas de Paris como um corpo de graciosidade angustiada que se mistura com os transeuntes - Varda filma a deambulação desta figura elegante e triste captando a espontaneidade nos rostos dos homens e mulheres que olham para ela e diretamente para a câmara. É a ficção feita documentário. Um dos filmes que integra a retrospetiva da obra da realizadora, a arrancar amanhã no Auditório da CCMO, com sessões todos os domingos, até 11 de dezembro..Mas comecemos pela exposição. Esta tem lugar quase 13 anos depois de duas instalações de Varda em Serralves (outubro de 2009): Bord de mer e Le Tombeau de Zgougou. Circunstância em que reencontrou Manoel de Oliveira, não apenas num ato oficial em torno da sua presença no Museu, mas também num plano mais descontraído e brincalhão, só com uma pequena câmara de vídeo e a filha de Varda, Rosalie, como testemunhas. É daí o famoso registo informal que surge no fim do primeiro episódio de Agnès de ci de là Varda (2011) - minissérie composta pelos encontros dela com colegas e amigos de todo o mundo, no seu estilo único de empatia -, onde vemos Manoel de Oliveira, desenvolto, a sacar de uma fabulosa imitação de Chaplin, com a bengala aos rodopios, um dedo a fazer as vezes do bigode e o jeito peculiar dos pés (performance já conhecida de Lisbon Story, de Wim Wenders). O vídeo desse momento está na exposição, numa sala escura, e as respetivas fotografias do encontro nas páginas do livro, ao lado da transcrição da conversa pública que Agnès e Manoel tiveram no Auditório da Fundação de Serralves..Nas palavras do diretor da CCMO, esta exposição "dá continuidade ao diálogo entre ambos, explorando polaridades constitutivas do trabalho da artista. Escuridão e luminosidade são, neste enquadramento, os polos que orientam a aproximação ao [seu] universo.".Tal como da primeira vez, estamos a falar de duas instalações, nenhuma antes exposta em Portugal. Desde logo, com Une cabane de cinéma: la serre du Bonheur (Uma Cabana de Cinema: A Estufa da Felicidade), apresentada na galeria Nathalie Obadia em Paris, em 2018, Varda desafia o estribilho "amor e uma cabana" revestindo uma estrutura de metal com uma cópia de 35mm do seu filme A Felicidade (1965), como quem convida o visitante a sentir-se em casa, literalmente dentro de 2500 metros de película de cinema. Aqui habita a luz..Já Patatutopia, instalação concebida para a Bienal de Veneza em 2003, segue a mesma filosofia de reutilização, não material mas orgânica, com... batatas. Depois do documentário Os Respigadores e a Respigadora (2000) - mais um exemplo da máxima empatia da cineasta, que aí seguia com a sua câmara as pessoas que recuperam o desperdício dos outros na sociedade consumista -, as batatas surgem como motivo justo para provocar uma reflexão sobre o envelhecimento. Um tubérculo amado por Varda, que levou para casa batatas em forma de coração, filmando-as ao sabor da passagem do tempo. São essas imagens que estão projetadas em Patatutopia, num tríptico audiovisual. Aqui, um espaço coberto de escuridão..O ciclo que a partir de amanhã tem lugar na CCMO começa com uma curta de quatro minutos, Agnès Varda - Pier Paolo Pasolini - New York - 1967, que nos chega precisamente no ano do centenário do cineasta italiano, marcando a abertura da sessão do já referido Os Respigadores e a Respigadora. Uma pequena grande curiosidade descoberta em 2021, e logo restaurada, que contém imagens 16mm da 42nd Street, onde Pasolini se passeia no meio de uma multidão colorida e movimentada, com o caos e as luzes nova-iorquinos cruzados pelo áudio de uma conversa entre Varda e o realizador (gravada à parte), em que ele discorre sobre as noções de realidade e ficção, marxismo e religião, o figurativo e o estético. Uma delícia muito vardiana, a que não falta a efervescência das texturas e, lá está, os rostos de transeuntes..Para além dos filmes que estabelecem uma continuidade direta entre a exposição e o ciclo, como é o caso de Os Respigadores... e A Felicidade, há vários outros títulos menos revisitados da filmografia da cineasta, sobretudo curtas e médias-metragens que dão conta de uma flânerie constante nos intervalos das suas produções mais longas. Exemplo do trio L"Opéra-Mouffe (1958), Salut Les Cubains (1963) e Black Panthers (1968), que compõe uma sessão, dir-se-ia, de apontamentos políticos sem mensagem. L"Opéra-Mouffe - mais próxima de uma curta feminista que acompanha outra das sessões, Réponse de Femmes (1975) - é o gesto de uma mulher grávida, a própria Varda, que filma a desolação da rua Mouffetard em contraponto com a esperança que carrega no ventre. Já Salut Les Cubains e Black Panthers - o primeiro, um foto-filme da Cuba pós-revolução, realizado a convite do regime de Fidel Castro mas com saudação aos cubanos em vez de a esse regime (e ainda Michel Piccoli na voz off), o segundo, filmado em Oakland, a apanhar o zeitgeist e a ação dos Panteras Negras - configuram a energia da mulher de câmara em punho, ou, como escreve Sylvain Dreyer num dos textos de Luz e Sombra, a "difícil dialética entre a aposta política e a prática estética, entre o movimento coletivo e a singularidade da cineasta"..Curiosa, entusiasta, generosa e senhora do seu nariz, Varda (que nasceu Arlette e, aos 18 anos, mudou o nome para Agnès), está inteira na retrospetiva apresentada na CCMO. Isto é, todas as suas facetas atravessam o programa, desde a primeiríssima obra, La Pointe-Courte (1955), que se considerou o filme inaugural da Nouvelle Vague, tendo Alain Resnais como montador, até à autobiografia documental As Praias de Agnès (2008). Há também para (re)ver Daguerreotypes (1975), que confirma a sua paixão pelas gentes de carne e osso, neste caso, da rua Daguerre, em Paris, onde morava; Sem Eira Nem Beira (1985), o percurso de uma sem-abrigo interpretada por Sandrine Bonnaire, tremenda; Uma Canta, a Outra Não (1977), musical de semblante feminino e feminista; Kung-Fu Master! e Jane B. par Agnès V., ambos de 1988, rodados em simultâneo, com Jane Birkin a envolver-se nos labirintos da ficção-documentário; e Jacquot de Nantes (1991), filme biográfico de Jacques Demy, o realizador dos mais belos musicais franceses, e o homem da vida de Varda para quem ela assinou esta derradeira prova de amor, pouco antes da morte dele..À fotógrafa que Varda foi, antes de se tornar cineasta, dedicam-se ainda as últimas páginas do livro Luz e Sombra, que mostram várias fotografias de um conjunto (centenas) feito por ela em Portugal, em 1956. No texto de Ricardo Vieira Lisboa que ilumina essa coleção lê-se a verdade que abrange toda a obra de Agnès: "a disponibilidade para o encontro"..dnot@dn.pt