Quando chego, o novo embaixador de Portugal em Angola está já sentado na esplanada da pastelaria Londres, mesmo junto à praça de touros do Campo Pequeno. Mas não é a nomeação para Luanda o pretexto desta conversa à mesa com Francisco Alegre Duarte enquanto não deixa Lisboa, e sim o livro infantil recém-publicado pelo diplomata, dedicado à filha Clara, de 9 anos, e intitulado Kyma e Safi: A Viagem de Uma Onda. As ilustrações são de Chico Bolila e a editora é a D. Quixote.."Escrevo para os meus filhos. Os primeiros livros, há mais de uma década, foram para os gémeos, Pedro e João, hoje adolescentes. Já têm 17 anos. Agora este é para a Clara. E haverá um dia um escrito para o Afonso, pois, apesar de ele aparecer um pouco já neste, sinto que estou em dívida", explica o diplomata de 48 anos, nascido em Argel porque o pai, o poeta Manuel Alegre, opositor à ditadura de Salazar e Caetano, ali esteve exilado até ao 25 de Abril de 1974..Faço a pergunta inevitável a quem tem por pai um grande nome da literatura portuguesa, se Manuel Alegre leu o livro e deu opinião. "Claro. Fazemos uma reunião lá em casa, a minha mulher, os meus filhos, os meus irmãos, os meus pais, e todos dizem o que têm a dizer, são uma espécie de comité", conta Francisco. "Claro que Manuel Alegre tem voto de qualidade, porque é o Manuel Alegre. É o pater familias e um leitor especialmente exigente e competente por razões óbvias e não faz favores nenhuns. Aliás, nunca fez. Nunca. Em nada do que nós filhos fizéssemos. Tanto do lado do meu pai como da minha mãe sempre recebemos uma educação pautada pela exigência. As pessoas têm a ideia de que por se ser filho do Manuel Alegre, figura pública, se tem a vida facilitada, e sim é verdade que temos mais oportunidades, mais acesso à cultura e à educação e tal, mas é preciso mostrar. É um pai exigente. E nisto dos livros não faz favor nenhum, como não fazia, lembro-me, quando nós, o meu irmão e eu, jogávamos râguebi. Uma vez, estudava eu Direito em Coimbra, jogava pela Académica e falhei uma placagem num jogo contra o Cascais, que era a grande equipa portuguesa, que a AAC depois finalmente acabaria por destronar; há um momento de silêncio a seguir a essa jogada e só se ouve um vozeirão da bancada a dizer "isso não é para fazer festinhas às pernas" [risos]. Está claro que a placagem seguinte já não a falhei para não passar novamente por essa vergonha. Voltando aos livros, sim ele tem uma espécie de voto de qualidade e não há problema nenhum nisso.".Conto que já fiz esta rubrica com Manuel Alegre, quando era "Almoço com" em vez de "Brunch com", e mesmo aqui perto, do outro lado da rua, no restaurante O Nobre. E que entre as muitas histórias que me contou então adorei uma passada exatamente em Argel, sobre os jogos de Portugal no Mundial de Futebol de 1966, em que Eusébio deu cartas em Inglaterra, que eram vistos pelos dirigentes dos movimentos que lutavam pela descolonização. Francisco, que admite não ter memórias da Argélia pois chegou a Portugal com menos de um ano, sorri e comenta que apesar de tudo, do trauma também das guerras, e depois de séculos de história conjunta, hoje existe "uma relação madura, de iguais", entre Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa, que não acontece muito com outras antigas potências e as suas ex-colónias..Um café e uma queijada para Francisco, uma meia de leite e uma queijada para mim. A manhã desta conversa, a penúltima do ano, está sem sol, mas a esplanada da Londres é agradável e a pandemia aconselha o ar livre mais do que os espaços fechados. Os filhos mais velhos do diplomata, do primeiro casamento, quase não largavam os ecrãs durante os piores meses da pandemia, queixa-se Francisco, que gosta que vivam o mundo e sintam a natureza. Felizmente os últimos tempos trouxeram para eles mais convívio e novas descobertas. Adolescentes, já não se entusiasmam com o novo livro como aconteceu com os primeiros, quando eram pequenos. "Na época, tinha-me separado da mãe deles, e por causa das minhas funções ficámos a viver longe, eu tinha sido colocado em Angola, e a escrita dos livros foi uma forma de manter os laços emocionais fortes como sempre quis.".Esses primeiros livros foram notícia no DN em 2009, descobri no arquivo do jornal. Editados por Nelson de Matos, tiveram como ilustradora Cláudia Mariz, designer que é prima do diplomata.."Gosto de todos os livros que escrevi, mas agora que já vou em seis sinto-me mais exigente comigo mesmo e olhando para trás há alguns que acho mais conseguidos do que outros. Dessa primeira leva diria que Serrote e Raspadinha, que é a história de dois grilos, e Maria Teias, que é a história de uma aranha que acompanha a família nas suas deambulações, talvez sejam os melhorezinhos", diz..Confesso que quando me preparava para esta conversa e me deparei com Maria Teias entre os tais cinco livros dedicados aos gémeos percebi que tinha em tempos lido as aventuras da aranha à minha filha Mariana, mas não as associando com o autor. Só agora com este Kyma e Safi: A Viagem de Uma Onda me dei conta desta faceta literária do embaixador Francisco Alegre Duarte, que nos últimos dois anos tem sido o conselheiro diplomático do primeiro-ministro António Costa..Se o amor aos filhos tem sido a principal motivação para a escrita dos livros infantis, e neste último a sua experiência como surfista amante das ondas também pesou na escolha do tema, já publicar outro tipo de obras, romances inspirados nas vivências diplomáticas ou até umas memórias, não está nos planos imediatos.."A Clara gostou do livro. Acho que ela se identifica com a personagem, que tem características que têm muito que ver com ela, que é uma menina muito determinada em tudo o que faz , que faz tudo sempre com grande brio e grande tenacidade e portanto ela é uma inspiração", diz Francisco. Quanto a escrever e publicar mais no futuro, tudo é possível, pois "a dimensão da escrita tem uma importância crucial na vida de um diplomata. Não sei se é possível ser um bom diplomata sem se escrever bem. Quem não escreve bem não pensa bem. Há os discursos, os artigos, mesmo aqueles que não se assinam, os telegramas, agora os tweets. E como diplomata que sou tomo notas sobre aquilo que observo, das conversas que ouço. Memórias ou romance um dia, vamos ver. Para já vou colecionando notas. Felizmente tenho tido grandes oportunidades na minha carreira e comecei logo a viver a história em Timor-Leste, quando era ainda um jovem diplomata.".Já tínhamos falado um pouco de Timor-Leste, de onde por coincidência eu voltei há menos de um mês, e que em 2022 vai celebrar 20 anos como país independente. Francisco tinha, aliás, falado de uma espécie de "conjugação astral" que proporcionara o referendo de agosto de 1999 sob a égide das Nações Unidas e que culminou com os timorenses a rejeitarem a integração na Indonésia, que ocupara a antiga colónia portuguesa em 1975, concretizando assim um desígnio histórico da diplomacia portuguesa. Mas agora é a sua própria experiência que relata, ele que integrou a missão portuguesa de preparação e observação do referendo: "Chegámos no início de junho. Via Bali. Antes tínhamos estado em Jacarta, onde Ana Gomes era a nossa embaixadora. Foram momentos muito intensos. Estávamos muito vigiados. Tropas indonésias por todo o lado, secreta indonésia também. Não sou católico mas fartei-me de ir a missas porque eram o sítio onde se podia fazer contactos e falar à vontade. A Igreja Católica teve um papel determinante na organização da resistência, na preservação da identidade e no voto com sucesso para a independência. Naquele momento do referendo foi absolutamente decisiva. Os timorenses também tinham uma relação com Portugal quase mística, via-se no culto da bandeira portuguesa. Para mim como jovem diplomata, na minha primeira missão, foi uma experiência única. Tinha 25 anos quando cheguei. Fiz lá 26. Vim para a carreira diplomática para servir o meu país. Acho que não se pode ser diplomata sem ser patriota e ali o meu patriotismo ficou logo nos píncaros [risos].".A missão portuguesa acabou por viver momentos dramáticos, quando a derrota da tese integracionista indonésia levou a uma onda de violência, e tiveram de ser retirados para Darwin na Austrália, mas esse é do tal material para uma eventual escrita num dia mais ou menos longínquo..Antes de falar um pouco de Angola, já no horizonte do diplomata, abordamos de passagem estes dois anos a trabalhar com o primeiro-ministro, a quem aponta a sólida experiência internacional, em especial na UE, e a empatia pessoal com muitos líderes, designadamente da CPLP. Francisco não hesita em dizer que o ponto alto foi a presidência portuguesa da União Europeia no primeiro semestre de 2021, em plena pandemia. E muito em especial a cimeira do Porto, na variante da política externa, com o inédito encontro dos líderes dos 27 Estados membros com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. "Não teria sido possível sem a relação do primeiro-ministro com o primeiro-ministro da Índia, sem a Índia valorizar muito o facto de o nosso primeiro-ministro ser o primeiro chefe de governo europeu com ascendência indiana. Acho que a cimeira UE-Índia foi uma excelente aposta e mostra que Portugal de facto é um país especial como ator global, que pode chegar muito acima do seu peso económico e demográfico, pela sua história, pelo peso da sua língua. E pelas relações que nos unem a tantas partes do mundo.".E agora o regresso a Luanda, que já foi uma das missões ao longo de uma carreira que incluiu também as Nações Unidas em Nova Iorque e a nossa embaixada em Itália? "Estive em Angola em 2009-2012 e voltei lá há uns meses com o primeiro-ministro para a cimeira da CPLP. Para mim, é uma enorme responsabilidade ser embaixador em Angola. Eu gosto de Angola, gosto do povo angolano, admiro sempre o seu otimismo, a sua esperança perante as adversidades, e gosto sobretudo da amizade fraterna que une os nossos povos e, portanto, como a amizade é uma virtude que se cultiva, eu espero vir a ser uma espécie de jardineiro diplomático dessa amizade, plantando, semeando, podando.".E quem diz que não será da experiência familiar em Angola que não sairá a ideia para o sétimo livro infantil de Francisco, o tal em dívida para com o pequeno Afonso, de 6 anos?.leonidio.ferreira@dn.pt