Como escritor, a sua opção foi usar o inglês. Alguma vez considerou escrever livros em suaíli?O escritor tem uma relação íntima com a língua. Não se trata apenas de fluência. O facto de alguém falar português não significa que tenha de escrever em português. Pode ser que a pessoa, se também fala outra língua, ou está a aprender outra língua, descubra que se sente mais à vontade a escrever nela. Esta é uma das explicações para eu escrever em inglês. Simplesmente sinto-me mais confortável nesse idioma. Nem sempre é uma escolha. Penso noutros escritores que não escrevem na sua língua materna, mas sim noutra língua. Por vezes, não conseguem escrever tão bem na sua língua materna, porque escrever não se resume apenas à fluência. É algo mais. Uma espécie de relação com a língua que surge intuitivamente. Em vez de ser algo que vem por falar uma língua fluentemente. Outra razão, claro, é que uma boa parte das minhas leituras na vida adulta foi em inglês. E escrever e ler estão interligados. Assim, escreve-se no contexto de um diálogo que se está a ter com outros textos que se leu ou que os nossos leitores leram. E no final de contas, acho que é simplesmente por causa desta ideia de me sentir confortável com uma língua. O inglês é uma língua na qual a minha mente consegue expressar-se em liberdade. E isso é sorte. Nem sempre é uma questão de escolha, penso eu.Qual é a sua relação pessoal com o suaíli, sua língua materna? O inglês foi a língua de educação ainda antes de deixar Zanzibar?Aprendíamos nas duas línguas. Até por volta dos 13 ou 14 anos, todo o ensino era em suaíli. E depois, quando se ia para o Secundário, de repente o ensino passava a ser todo em inglês. Portanto, uma transição bastante difícil, na verdade. Nasci em 1948. Cresci e estudei em Zanzibar durante o período em que ainda éramos uma colónia britânica. E por alguma razão, devido à Administração Colonial, a maioria dos professores do Ensino Secundário eram europeus. Eram britânicos, por vezes rodesianos ou sul-africanos. Mas nos primeiros anos da escola, todos eram zanzibarianos. Alguns deles nem sequer falavam inglês. Assim, imagino que tenha sido uma espécie de solução imposta por essas limitações que estes professores enfrentavam ao lecionar. E depois, no liceu, era o contrário. A maioria dos nossos professores não falava suaíli. Só falavam inglês. Portanto, tínhamos de aprender muito, muito rápido, no mínimo para conseguir fazer os trabalhos que eles pediam. E penso que para alguns alunos este foi um obstáculo muito difícil. Não que não fossem inteligentes o suficiente, mas era preciso aprender outro idioma para se desenrascar, sem grande preparação. O inglês que aprendi na escola, mesmo no Secundário, era apenas para me conseguir desenrascar em determinadas áreas. Eu na época não conseguiria manter uma conversa destas consigo.Recentemente descobri que Portugal em suaíli é “Ureno”. Sei que está relacionado com a presença histórica de Portugal na África Oriental, desde a viagem de Vasco da Gama. Há ainda conhecimento desta presença portuguesa em Zanzibar? Algum legado que ficou?Bem, certamente conhecemos “Ureno”. Mas também só descobri recentemente por que é que os portugueses são chamados de “Ureno”. Vem da palavra reino. Presumo que quando os portugueses chegaram, se apresentaram como vindos do reino de Portugal. Assim, a palavra manteve-se: “Ureno”. Portanto, sim, toda a gente sabe que significa “os portugueses”, e sabemos que os portugueses estiveram presentes de várias formas, porque nos falam disso. Mas também há algumas palavras que ficaram. Assim, por exemplo, o dinheiro é “pesa”. Em suaíli não significa peso, significa dinheiro. A palavra para mesa é “meza”. Então há certas palavras que sobreviveram. Há também as lendas que as pessoas contam sobre a presença dos portugueses aqui e ali. Portanto, mesmo de uma forma popular, mesmo sem se estudar História, há uma consciência de que os portugueses estiveram ali. E, claro, há, na costa, no Quénia, aquele enorme forte em Mombaça, o Fort Jesus, que todos sabem ter sido construído pelos portugueses. Zanzibar, como nação, antes de se tornar parte da Tanzânia em 1964, era duas ilhas principais, Ungunja e Pemba. Em Pemba, as touradas sobreviveram. Portanto, existe este tipo de legados. Penso que há também, numa das ilhas pequenas, várias campas de marinheiros portugueses, de soldados. Mas nunca lá estive.Os seus livros anteriores, como Vidas Seguintes, revelam-nos muito sobre esta parte de África banhada pelo Oceano Índico, muito sobre colonialismo, sobre turbulência política, sobre refugiados. É realmente uma região muito rica em material histórico para um romancista trabalhar? Claro. E não só é rica, como, pensando na literatura africana, não é uma área muito explorada na ficção. Certamente, quando eu próprio era estudante de Literatura, em Inglaterra, a minha especialização, ao iniciar os meus estudos de pós-graduação, foi a Literatura Africana, e as pessoas presumiam que a ficção representativa de África era, de um modo geral, o que vinha da África Ocidental. E muito pouco se sabia ou se escrevia sobre a nossa parte do mundo. De certo modo, tal devia-se a uma espécie de autossuficiência da região. Grande parte da escrita ainda é feita em suaíli, por exemplo, ou noutras línguas. E suponho que a escrita não é assim tão importante, porque existem outras formas de transmissão. Oral ou através de viagens, as pessoas vão e vêm. E é importante o facto de que historicamente tudo remonta há muito tempo, às relações entre os países da costa do Oceano Índico, desde toda a costa de África, passando pela Arábia do Sul, o Golfo Pérsico, a Índia e mais além. Uma das coisas mais interessantes para mim, quando comecei a escrever, foi perceber que este é um mundo sobre o qual não se escreveu, pelo menos não em inglês. E, por isso, como escritor, foi muito tentador dizer: “Vamos...” Além disso, a história do encontro entre a Europa e estas partes do mundo, está em grande parte documentada, mas o que se sabe é, na sua maioria, o que foi escrito por europeus. E isso não conta a história completa. Conta apenas um lado da história. Portanto, há outro motivo para escrever: dizer que isso não está completo, eis aqui uma outra perspectiva, uma outra forma de encarar estes acontecimentos.Mencionou a África Ocidental como muito mais falada, mas, de certa forma, a África Oriental parece ser mais complexa. Olhando para a Tanzânia, e sobretudo Zanzibar, estamos obviamente a falar da forte presença árabe. E de todos os contactos também com a Índia ao longo dos séculos. Temos até o efémero colonialismo alemão, antes do britânico. Esta África Oriental é provavelmente mais complexa do que a África Ocidental?Bem, em termos de populações locais, a África Ocidental é também extremamente complexa. Quem pensar que todos os países são semelhantes, está enganado. Se pegar em qualquer país, qualquer país, a maioria dos países da África Ocidental foram criados a partir de ou para conveniência colonial. Todas essas fronteiras, na verdade, albergam povos diversos, com línguas diferentes e religiões diferentes. Um país como a Nigéria tem provavelmente dezenas de línguas diferentes, para não falar dos vários grupos étnicos. Assim, o que pode parecer homogéneo, na verdade, não é. Estas diferenças entre, digamos, as pessoas de Camarões, as que vivem no litoral e as que vivem nas terras altas, a diferença entre elas pode muito bem ser como entre os europeus e os africanos, porque se consideram completamente diferentes. Foi apenas no sentido moderno que a ideia de uma identidade africana se tornou algo que as pessoas abraçaram. Antes do período da descolonização, as pessoas viam-se como separadas até dos seus vizinhos. É como Portugal e Espanha. Durante séculos, vocês veem-se como entidades separadas, mas para o resto do mundo, a Península Ibérica, é como se fossem iguais, ou algo do género..Quando falo de eventual menor complexidade na África Ocidental, é porque se tratava do legado do colonialismo europeu. E do choque deste com os africanos. Sugeria a África Oriental como mais complexa por causa da presença árabe também, sobretudo dos omanitas que derrotaram os portugueses, ou da indiana e de outros asiáticos. Isso explica as especificidades desta costa que, digo eu, vai do Quénia ao norte de Moçambique?Sim, sim, correto, correto. Mas isso remonta a muito, muito antes dos omanitas. Repare, os omanitas não chegaram de forma significativa, em termos de domínio, até ao século XVIII. Entretanto, a mesquita mais antiga encontrada naquela costa data do século IX. Assim, já havia quase mil anos de Islão quando os omanitas chegaram. A presença destes outros povos vindos da Somália, da Arábia, da Índia ou da China. É uma história fascinante. Os navios do almirante Zheng He chegaram até à África Oriental, viajaram ao longo da costa, e ainda hoje não é de estranhar que esteja a passear pela praia e encontre fragmentos de cerâmica que só podem vir da China. Portanto, tem razão sobre estas ligações, principalmente em relação aos impérios, mas o mais importante, penso eu, sobre estas relações entre a costa oriental africana e outros povos do Índico, é o comércio. Vou contar-lhe outra história. Em Zanzibar existe um forte chamado Ngomi Kongwe, o “Forte Velho”, mesmo no passeio marítimo da cidade. Uma das torres ruiu recentemente. E há uma equipa de arqueólogos que tem trabalhado em diferentes pontos da ilha. E, sabe, que quando algo assim acontece, os arqueólogos dizem para não se reconstruir logo. “Deem-nos seis meses.” E eles escavam, escavam e escavam. Então, têm estado a escavar debaixo daquela torre e a escavação mais recente revelou vários tipos de cerâmica, contas, vidro, etc., várias coisas deste género. E a análise de cerâmica melhorou incrivelmente do ponto de vista científico nos últimos anos. Assim, o que agora conseguem fazer é não só analisar o material e dizer, por exemplo: “OK, este vidro foi feito de areia que só se encontra na costa da Somália” ou “foi feito na costa da Tailândia”. Mas agora também podem dizer: “Acreditamos que isto veio de uma oficina em Xiraz.” Então, o que conseguiram descobrir é que por volta de um século antes de Cristo, digamos, não me lembro agora bem, chegaram estes produtos que puderam ser identificados como provenientes da Tailândia, do Irão, etc. Portanto, estamos a recuar ainda mais do que estes mil anos ou mais do que o Islão.É realmente uma parte muito cosmopolita de África.Sim. E mais: encontraram cerâmicas dessas no Botswana, que fica mesmo no interior do continente. Ou seja, não se trata apenas do comércio marítimo, mas sim de um comércio com povos do interior, até mesmo na África Austral. Portanto, não se trata apenas do litoral do Índico. Esta transmissão de comércio e, presumivelmente, também de cultura, culinária, religião e língua ocorre há muito, muito tempo.Existia também um comércio de escravos específico nesta zona de África, não dirigido tanto para as Américas, mas principalmente para o mundo islâmico. A memória desse tráfico ainda afeta a região nos dias de hoje?Politicamente, sim. Politicamente, porque se tornou a fonte de um certo tipo de posicionamento político. Mas, claro, o comércio de escravos em grande escala, para além do tipo de comércio discreto que provavelmente já existia há muito tempo, trouxe infelicidade aos africanos. Todos escravizaram. É claro que a escravatura também ocorreu nos Balcãs, e no resto da Europa e outras partes do mundo. Mas sobretudo durante os séculos XVIII e XIX na costa oriental de África assistiu-se a um comércio em grande escala de escravos, não só para o mundo árabe, mas também para as ilhas do Índico. As Ilhas Maurícias e a Reunião eram, em grande parte, ilhas desabitadas. E os europeus, primeiro os franceses e depois os britânicos, quando decidiram usá-las como ilhas de plantação, tiveram de trazer mão de obra. Assim, as ilhas tornaram-se também o destino destas pessoas escravizadas que acabavam por vir da costa de África ou de Madagáscar. Os ataques para captura de escravos em Madagáscar foram outro exemplo. E houve gente também levada para a África do Sul. Nas plantações no Natal, a população local, os sul-africanos, recusou-se a fazer este trabalho. Eram, na verdade, guerreiros. Não se queriam envolver com o cultivo da cana-de-açúcar. Por isso, tiveram de trazer mão de obra de outros lugares, de outras partes de África. E também gente originária da Índia após a abolição da escravatura, razão pela qual existe uma população indiana tão grande no Natal. Nos movimentos de populações, a escravatura foi apenas uma parte. Mas sim, tem razão, tornou-se algo politicamente muito usado. Pense na forma como os políticos europeus falam sobre os requerentes de asilo, e embora não seja necessariamente verdade, eles conseguem usar isso como uma plataforma para expressar as suas queixas sobre o que está a acontecer no mundo. “Nós não queremos esses estrangeiros”, dizem. Depois, a política na Tanzânia, em Zanzibar, por exemplo, utilizou o facto de a ilha ter sido um entreposto para o tráfico de escravos. Mas não foi só isso. Mas, sabe, é assim que funciona a política.O seu último livro, Gente da Casa, trata de tempos mais recentes. Como vê a Tanzânia e Zanzibar contemporâneos, parte de uma federação? Tem uma visão otimista sobre o país onde nasceu, apesar dos problemas?Sim, tivemos recentemente eleições, há cerca de duas semanas, que resultaram em violência e assassinatos. O Estado é autoritário. Portanto, se analisarmos isto, veremos mais uma nação africana governada por um regime autoritário. Mas devemos separar Zanzibar do continente, porque na verdade são dois países, com dois governos. Dois presidentes. E mesmo na FIFA tentaram ser dois membros distintos. Depois, têm as suas próprias bandeiras, etc. Portanto, são realmente duas nações. Mas a violência recente ocorreu sobretudo no continente. As eleições em Zanzibar, até à última, foram sempre violentas, porque as forças de segurança intervinham, criavam o caos e a população ficava revoltada. Havia fraude na contagem dos votos e assim por diante. Mas desta última vez, não houve violência. E parte da razão para tal é que os dois partidos que se opunham decidiram formar um governo de unidade nacional. As eleições correram bem. Todos ganharam. Assim, o presidente ganha e o líder da oposição torna-se vice-presidente. Fim dos problemas. Mas na Tanzânia, na parte continental da Tanzânia, ainda há muita contenda. Há pessoas que se sentem sem representação. Mas, no geral, qual é o futuro da Tanzânia? Penso que é um país mais tranquilo do que muitas, muitas outras nações africanas. Portanto, as eleições foram realmente atípicas. A violência nas eleições foi invulgar para a Tanzânia continental. Acho que o país tem futuro. Mas o governo ainda é muito forte, muito autoritário.Mas, como referiu, a sociedade civil é forte. As pessoas tentam fazer-se ouvir.Mais recentemente. Quer dizer, noutros países têm-se manifestado de forma mais incisiva. No Quénia, por exemplo. Os jovens no Quénia têm sido muito, muito ativos, em parte, e isto é uma grande diferença, porque lá existem grandes grupos étnicos distintos. Existem os Luo, os Kikuyu, os Kalenjin, e assim por diante. Na Tanzânia, estes grupos não são tão grandes. Há grupos muito, muito pequenos. Portanto, não existe esse tipo de fragmentação, por assim dizer, dentro da própria nação. Há muitos grupos pequenos que têm de concordar entre si. E o que acontece frequentemente com os problemas que vemos nos países africanos são, creio, uma herança pela criação de fronteiras. Estes países não são nações no seu verdadeiro sentido. Os seus territórios foram criados pelos colonizadores para sua própria conveniência. E onde há grandes grupos de pessoas, as oposições, naturalmente, são mais fortes. Pense na Catalunha e em Espanha, por exemplo. Onde existem pequenos grupos não existe o mesmo sentido de identidade, e as pessoas conseguem negociar entre si..Pensa que provavelmente é mais fácil construir uma nação tanzaniana porque não existem grandes grupos?Acho que sim. Provavelmente, leva tempo para reconciliar dois ou três grandes grupos. Já se forem vários grupos pequenos, penso que talvez consigam negociar porque nenhum deles é suficientemente forte para dizer ao outro: “Queremos isto, queremos que se submetam a nós, ou queremos a nossa própria liberdade”. O suaíli concorre com o inglês como língua dominante na África Oriental? É usado no dia à dia pelos tanzanianos? Como vê o futuro desta língua africana?Bem, é enorme. É gigantesco. Milhões e milhões e milhões, e está a espalhar-se mais. A sua casa, claro, é o litoral, porque é isso que significa. Suaíli vem da palavra árabe para “litoral”.Mas agora tem falantes mesmo nos Grandes Lagos, no coração de África, certo?É falado até na República Democrática do Congo. Até na Zâmbia, no Malawi, ou no sentido norte, na parte sul da Somália. E parece estar a espalhar-se cada vez mais. Mas respondendo à sua pergunta sobre a forma como é utilizado, na Tanzânia, o primeiro presidente, Nyerere, há muitos, muitos anos, convenceu a nação, convenceu os seus seguidores - era um líder muito poderoso - a fazer do suaíli a língua nacional. Portanto, no Parlamento, é esta a língua que os candidatos falam. Nas escolas, é a língua principal. Nos jornais também, etc. Portanto, toda a gente fala suaíli na Tanzânia, mesmo que não seja a sua língua materna. Porque, claro, todos estes pequenos grupos também têm as suas próprias línguas. A ideia era que o suaíli fosse a língua unificadora para todos. Toda a gente tem de falar. Claro que, como acabei de dizer, o suaíli também é falado em vários outros países, mas não é a língua nacional. O Quénia, creio, tem tanto o inglês como o suaíli como línguas oficiais. Suspeito que o Uganda também tenha inglês e suaíli, e possivelmente línguas ugandesas, porque, mais uma vez, existem lá várias línguas dominantes, várias etnias dominantes. Portanto, o suaíli está a sobreviver, sem problemas. Está a sobreviver não só porque é uma língua necessária para a comunicação entre estas pessoas, mas porque a rádio, a TV e os jornais são em suaíli, e não em inglês. A sua expansão está a fortalecer-se cada vez mais. .“Putin está a canalizar tanto o poder Romanov como o soviético para um novo paradigma de Estado russo”