Para lá da compreensível resistência anímica de alguns espectadores, o novíssimo filme de Pedro Almodóvar, O Quarto ao Lado, corre sérios riscos de ser instrumentalizado pelo esquematismo do politicamente correcto. Como? Reduzindo-o a um filme “sobre” a eutanásia. Enfim, não simplifiquemos, esta é mesmo a história do diálogo da escritora Ingrid Parker com a sua amiga Martha Hunt em circunstâncias excepcionais: Martha programou o fim da sua vida e quer que Ingrid a acompanhe nos seus últimos dias….Não se espere que o crítico de cinema seja o arauto de uma “análise” integral, muito menos definitiva, da infinidade de questões envolvidas. Lembremos, por isso, uma verdade de La Palice: O Quarto ao Lado não é um amontoado de lugares-comuns para “ilustrar” as tardes coloridas de um qualquer “talk show” moralista, mas um extraordinário objecto de cinema que como tal merece ser visto e pensado..Num resumo muito redutor, podemos dizer que tudo acontece nos rostos de duas actrizes em estado de graça: Julianne Moore e Tilda Swinton (respectivamente como Ingrid e Martha). O misto de desencanto e ternura que pressentimos na primeira ecoa na sereníssima tristeza da segunda. Certamente não por acaso, circulam por cenários cujas cores recusam qualquer sugestão lúgubre, integrando superfícies vidradas que reflectem a sua solidão e as solidões de que se faz um mundo - incluindo, claro, a imagem ausente desse convidado sem corpo que é o espectador..Como sempre, aquela dimensão cenográfica é essencial no trabalho de Almodóvar, como que “materializando” as convulsões emocionais vividas pelas personagens - o que, ironicamente, tem as suas raízes na sua primeira fase de comédias burlescas, incluindo esse filme emblemático que é Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988). Sem esquecer que, desta vez, nada disso é estranho ao valor essencial das palavras..Talvez se possa resumir a vibração dramática de O Quarto ao Lado através de uma pergunta que envolve as possibilidades, e também os impasses, das palavras que partilhamos com os outros: como dizer a proximidade da morte? É uma pergunta animada por uma vitalidade contagiante, bem diferente da obscenidade “informativa” que nos rodeia: uma coisa é a avalanche de “blá-blá-blá” analítico que afoga as nossas sensibilidades, outra, bem diferente, será a possibilidade de, através das palavras, acedermos a esse território perturbante em que o clarão da vida faz fronteira com o silêncio indizível da morte..Em filmes excepcionais como O Quarto ao Lado, tudo isso acontece sem sermos encerrados nos maniqueísmos da nossa cultura mediática, observando e, de algum modo, partilhando a esplendorosa ambiguidade do cinema, apelidada por Jean Cocteau como “a morte no trabalho”. Um dia, retomando as suas palavras, Jean-Luc Godard acrescentou: “A pessoa que filmamos está a envelhecer e vai morrer. Filmamos, portanto, um momento da morte no trabalho. A pintura não se move; o cinema é interessante porque se apropria da vida e do lado mortal da vida”.