Chegou recentemente às livrarias o romance da autora espanhola Rosario Raro intitulado Proibida na Normandia. O título poderá dizer pouco aos leitores do mundo atual mas há oitenta anos, no rescaldo da II Guerra Mundial, o termo geográfico encaminhava imediatamente qualquer pessoa para as praias do desembarque das tropas aliadas que iriam em semanas dar fim ao delírio hitleriano de impor uma Nova Ordem Mundial. O mais interessante é o facto de Raro pretender recuperar a figura de uma das mais importantes correspondentes de guerra: Martha Gellhorn..A protagonista tem características próprias dos jornalistas que cobrem com grande risco e coragem os grandes conflitos e a particularidade de ser mulher, género completamente proibido de estar nesses dias no interior dos milhares de navios que se aproximaram da costa francesa e que deixaram para uma morte certa muitos milhares de jovens. Gellhorn era a única mulher que estava entre esses soldados que nas primeiras vagas do desembarque iriam ser sacrificados para que as posteriores pudessem irromper sob o fogo alemão e ocupar posições de conquista..Foto: DRPROIBIDA NA NORMANDIARosario RaroPorto Editora382 páginas.Foram muitas as vítimas mortais de imediato e uma imensa quantidade de feridos. Martha Gellhorn estava no grupo dos segundos, tendo sido ferida no desembarque e, com sorte, ter sido recambiada para um dos navios da operação. Entretanto, teve tempo para observar os acontecimentos terríveis e ter utilizado um rolo de fotografias que documentaria os primeiros instantes do confronto. Proibida na Normandia refaz todos esses minutos de intenso perigo, viaja para trás, relatando o modo como a jornalista foi capaz de se introduzir entre os batalhões masculinos; e viaja para a frente, contando as repercussões dessa aventura. O relato é biográfico, mas com uma tonalidade emocional..Rosario Raro teve um objetivo com este romance, como explica: “Não podia deixar de escrever sobre Martha Gellhorn a partir do momento em que soube que era a única mulher entre mais de cento e cinquenta mil homens que estava lá no Dia D, mesmo na hora H. Depois, informei-me e descobri outros detalhes que tornavam a história dela ainda mais interessante: o facto de lhe ter sido negada a permissão para viajar para a Europa, a amizade com H.G. Wells, o breve casamento com Hemingway, ou a fábrica de truques de magia para a guerra que foi Hollywood. A ligação dela a todas essas situações era muito literária e senti que tinha de escrever esta história. Os documentários e os ensaios são importantes, mas os filmes e os romances tocam mais as pessoas nos corações. Essa é a razão de ter escrito, num registo que na tradição anglo-saxónica se chama de facção, ficção baseada em factos reais. Além de que o tema social me interessa bastante, daí que estejam sempre bem presentes nos meus cinco romances já publicados.”.A história de Martha Gellhorn não é totalmente desconhecida, mesmo que, apesar da sua originalidade, seja do conhecimento de menos pessoas do que deveria ser. Uma das razões tem o nome de Ernest Hemingway, o marido breve de Gellhorn, que tudo fez para eliminar o destaque que ela mereceria. A autora de Proibida na Normandia não pretendeu dar muito destaque ao famoso escritor, tanto que só surge no capítulo V, mesmo que não o pudesse evitar tal o seu papel. Explica: “Foi intencional a forma como escrevi; queria dar a Martha o primeiro plano, que era dela, e evitar que fosse uma nota de rodapé na vida de outra pessoa: Hemingway.” As rivalidades entre ambos já vinham de longe, como quando a revista para a qual Gellhorn trabalhava, a Collier's Weekly, a enviou para a China..Raro recorda: “Hemingway não gostou de ser apenas o seu companheiro e dizia que queria uma mulher na cama em vez de uma repórter na frente. Mas nem sempre foi assim, pois ela sentiu admiração por ele no início do relacionamento. Foi o caso de quando estiveram juntos em Madrid durante a Guerra Civil e ela teve um bloqueio devido à barbárie a que assistia e foi Hemingway que a pressionou para escrever sobre o que via. Após esse primeiro momento de apoio, Gellhorn considera que, como estava a ter um papel que o ofuscava, o que se deu foi um eclipse quase total da sua pessoa por parte dele. Aliás, no caso do desembarque do Dia D, não existem provas documentais de que ele sequer tenha pisado qualquer uma das praias, no entanto, foi publicada uma crónica assinada por si e em que até dava a entender que dirigira algumas das manobras militares.”.Ao ler-se este romance em tempo de guerras que ocupam hoje os noticiários, é impossível não se perguntar a Rosario Raro se se podem fazer paralelos entre Martha Gellhorn e as dificuldades postas aos jornalistas para cobrir os conflitos em curso. Para a autora, “todas as guerras são iguais, apenas se alteram as horas e o lugar, sendo que são sempre os mesmos que morrem e o interesse económico que vence”. Faz um segundo paralelo: “Ao colocar-me no lugar destes jornalistas intrépidos, foi como ter diante de mim grandes exemplos de coragem. Os meus personagens são muito mais corajosos do que eu. Quanto a esses profissionais, não duvido que, oitenta anos depois, têm mais dificuldade do que os seus colegas de antes, especialmente no caso das mulheres, sempre pouco respeitadas em muitos desses países.”.Mas há vários pontos em comum segundo Raro: “A falsificação da realidade é um deles. Hoje, confrontamo-nos com as fake news e antes com os jornalistas que inventavam as notícias. Muitos dos antigos ficavam nos bares dos hotéis e se vissem a chegada das tropas era de longe, não pisavam a areia de Omaha nem das outras praias. Gellhorn desprezava-os porque fazia questão de estar na linha de frente para fazer seu trabalho. Hoje, também temos casos em que em vez de investigar e depois escrever, o que fazem é contar de acordo com determinados interesses políticos ou económicos.”.A biografia de Martha Gellhorn, diz Rosario Raro, confirma que estava preparada para participar do desembarque: “Antes de chegar à Inglaterra em 1944, já cobrira vários conflitos: na Finlândia, Hong Kong, Singapura, Birmânia e Espanha. Para esta reportagem, ela teve de se esconder como clandestina a bordo de um navio-hospital. Estava muito mais preparada do que a maioria dos que participaram deste combate e a sua vontade de participar não foi um capricho, mas o oposto. Posteriormente, terá sido quem melhor refletiu na imprensa sobre aquela guerra, que se seguiu ao colapso da economia em 1929. Nos seus artigos, estão sempre aqueles que sobreviveram a uma miséria que parecia não ter fim. Era o que a motivava e essa vontade foi uma das razões para escrever este romance. A presença de Martha Gellhorn na Normandia foi apagada e, se entretanto lhe foi dado o seu nome a um prémio de jornalismo nos Estados Unidos e até emitiram um selo, não há dúvida de que se tratou de uma das mais importantes correspondentes de guerra do século XX.”.Fica uma pergunta sobre esta tentativa de resgatar Martha Gellhorn do esquecimento: alguma vez se viram as fotografias do único rolo que Martha Gellhorn usou no desembarque? A resposta é curta: “Não, ou pelo menos não até ao momento”. No entanto, nem tudo foi apagado e, para refazer a biografia da jornalista, Rosario Raro evitou passar para o leitor a sensação de que estava apenas a contar uma história: “Essa foi a parte detetivesca do romance; reuni muita documentação, li os seus trabalhos e consultei várias fontes, de forma a descrevê-la como era: uma pessoa empática, destemida e indomada.”.Lançamentos.Foto: DRCONVERSAS COM ESCRITORESIsabel LucasCompanhia das Letras351 páginas.AUTORES DE “D” A “Z”.Bastava a entrevista a Elena Ferrante para que se justificasse esta recolha de Isabel Lucas, mas não se fica por aí e podem ler-se várias conversas com os grandes autores das últimas décadas. Nomes importantes, que deixam respostas que permitem compreender melhor o ofício da Literatura e a forma como o executam, com o benefício de terem sido interrogados numa geografia internacional e não, facilmente, cá em casa. .Foto: DRA BELEZA DAS PEQUENAS COISASBernardo MendonçaOficina do Livro566 páginas.DO PODCAST A LIVRO.O desfile de entrevistas feitas por Bernardo Mendonça é enorme e o espectro de personalidades bem diverso que se publica neste espesso volume que recolhe o que já foi um som e agora fica registado para os leitores sob outra forma. Não são apenas escritores, também muitas outras “profissões” que deixam um testemunho fundamental nestas páginas. Uma memória necessária para o desenho cultural do país..Foto: DRPROVA DE VIDAAntónio AraújoTinta da China440 páginas.QUASE OBITUÁRIOS.António Araújo utiliza uma expressão arrojada, a de “quase obituários”, para retratar umas dezenas de portugueses que todos conhecem por andarem por aí nas últimas décadas, num trabalho de investigador que se mistura com o de biógrafo. Não são na sua maioria os protagonistas que a elite aprova, antes visita personalidades que existiram sob várias formas na vida nacional e que agora ficam fixadas para a história social.