A última vaga de Agnès Varda
Na sua segunda longa-metragem, Cléo de 5 à 7 (1962), que em português se intitulou Duas Horas na Vida de Uma Mulher, Agnès Varda juntou o tempo subjetivo com o tempo objetivo: num par de horas, uma mulher, que depois de uma sessão de tarot acredita ter cancro, veste-se de preto e percorre as ruas de Paris numa ansiosa flânerie à espera dos resultados de um exame clínico. O medo da morte era aqui pretexto para experimentar o fôlego citadino ao jeito da Nouvelle Vague, mas também para unir a ficção ao bichinho documental - veja-se como Varda fez questão de captar a espontaneidade nos rostos das pessoas que se cruzam na rua com a figura esbelta e triste da atriz Corinne Marchand.
Esse filme emblemático da sua carreira, evocado no início de Varda por Agnès, ilustra bem o que poderá estar na base deste derradeiro documentário. A saber, um prenúncio de morte acompanhado do desejo de uma última passeata pela "cidade" que é a sua obra. Varda morreu no passado mês de março, aos 90 anos, um mês depois da apresentação do filme-missiva no Festival de Berlim, e deixou-nos um mapa para percorrer os seus trabalhos - não apenas no âmbito do cinema, mas também enquanto fotógrafa e artista visual. Sentada perante audiências, ora numa sala de teatro, ora ao ar livre, ela vai fala como quem apresenta o seu universo criativo às gerações do futuro, com o entusiasmo e generosidade que sempre lhe definiram a presença. Cada excerto de filme é uma porta de entrada para um tema, um método livre, uma recordação emotiva ou espirituosa, acabando numa reflexão sobre o que é isto de fazer cinema.
Colecionadora de memórias, de batatas em forma de coração e rostos de "pessoas reais", Agnès Varda não poderia deixar o horizonte terreno sem partilhar as suas histórias com os espectadores. Não seria nada ao seu estilo. Por isso convidou algumas personalidades, como Sandrine Bonnaire, atriz do tremendo Sem Eira Nem Beira (1985) - filme-inquérito sobre uma jovem sem abrigo -, que aqui recupera a experiência dura dessa rodagem, quando ela, Bonnaire, era ainda uma adolescente de 17 anos. Momentos de diálogo como este são exemplo da sensibilidade e empatia de quem orienta a viagem de duas horas de Varda por Agnès.
A câmara da cineasta belga sempre pendeu para a gente de carne e osso. Preferia as pessoas da sua correnteza (como as da rua Daguerre, em Paris, onde morava) às grandes estrelas da moda, mas, paradoxalmente, num único "maldito" filme - Les cent et une nuits de Simon Cinéma (1995) - concentrou o mais que se podia concentrar dessa nata: Michel Piccoli, Marcello Mastroianni, Catherine Deneuve, Alain Delon, Jeanne Moreau, Gérard Depardieu, Jean-Paul Belmondo, Jane Birkin, etc. Até Robert De Niro apareceu para a festa e decorou umas frases em francês no próprio dia da rodagem... Aventuras de uma mulher sem peneiras e de curiosidade ilimitada, que chegou a filmar as suas pesquisas sociais em Los Angeles (Black Panthers, Lions Love) enquanto o marido, o cineasta Jacques Demy, experimentava Hollywood com Model Shop (1969).
Demy é, de resto, o centro das suas memórias íntimas e afetivas, que já partilhara em As Praias de Agnès (2008), e que se resgata no tempo através das imagens de Jacquot de Nantes (1991), o filme biográfico sobre ele que ela realizou como um gesto de amor. Palavra importante, essa: amor. Definidora de um modo de encarar a trivialidade do quotidiano para daí extrair um motivo artístico. Um gato é amor, a imagem fixa de alguém querido é amor. A contaminação do cinema pela vida, e da ficção pelo documentário, é o que torna a sua filmografia tão rica, genuína e vibrante.
Ao condensar uma revisitação de 60 anos de carreira, Varda por Agnès não configura, apesar do conceito, um manual didático para aceder à substância da sua obra - espécie de matéria dada à pressão. Pelo contrário, Varda usa da informalidade e gentileza de velha habitante do mundo para se espelhar em nós através de momentos, ideias e inspirações, no humilde desejo de deixar uma semente de memória. É uma muito calorosa despedida, sem o mínimo ruído de pedagogia sobranceira, que deixa na sala uma aragem marítima, ou não fosse a praia a paisagem predileta de Agnès Varda. A melancolia, essa voa como os grãos de areia.
**** Muito bom