A tradutora de ‘Mensagem’ para hindi que fez tese de doutoramento sobre palavrões em português
"Pra caramba!”, responde, entre risos, Manjulata Sharma, quando pergunto se foi muito difícil traduzir para hindi a Mensagem de Fernando Pessoa. A académica indiana, que ganhou pronúncia brasileira durante os seis anos que passou no Rio de Janeiro a fazer o doutoramento, sublinha que não se tratou só da dificuldade das referências do poeta a figuras como o Infante D. Henrique e a “contextos históricos que os indianos não conhecem tão bem como os portugueses”, mas da própria “passagem da língua portuguesa para o hindi. A tradução não pode ser literal. Temos de pensar qual é a visão do poeta. Tive de entrar na cabeça de Fernando Pessoa. Há toda essa emoção que está a querer transmitir e que temos de refletir”.
Sharma fala no auditório da Faculdade de Letras, onde participou na celebração do Dia do Hindi. Nesta vinda a Lisboa, também esteve no Instituto Camões para o lançamento da sua tradução de Mensagem, um projeto financiado pelo grupo O Valor do Tempo. E houve ainda oportunidade para uma visita à Fundação José Saramago, à qual ofereceu a edição em hindi de A Viagem do Elefante.
“De Saramago traduzi A Viagem do Elefante, em 2024, e, há muitos anos, o Conto da Ilha Desconhecida”, conta, tendo ao lado um antigo seu aluno em Nova Deli, Shiv Kumar Singh, agora professor na Universidade de Lisboa e, ele próprio, figura destacada da relação cultural luso-indiana, autor do Dicionário de Hindi-Português-Hindi. Cerca de 600 milhões de pessoas falam hindi.
“Estou muito contente pelo sucesso dos meus antigos alunos, como Shiv. Agora há muitos estudantes interessados na língua portuguesa, mais por causa dos BRICS, grupo que tem vários países, além da Índia, e um deles é o Brasil. Há muito comércio e isso dá oportunidades de trabalho. Eu própria, há poucos dias, fui convidada para interpretar numa negociação de compra de aviões com os brasileiros da Embraer”, diz Sharma, que foi pioneira no estudo do idioma em Deli.
“Estava predestinado que ia estudar português”, conta. “Eu estava a fazer um mestrado em língua francesa. Tinha sido a minha primeira língua na universidade. Mas foi a época da visita do presidente Mário Soares à Índia, muito importante para desenvolver as relações diplomáticas, e ele tomou a iniciativa de fundar um Curso de Português, para espalhar a língua de Portugal para além de Goa. Goa tem muita influência histórica portuguesa, mas é um pequeno estado, um pequeno ponto no mapa da Índia. Soares queria levar o Português para Deli, o centro político. E foi assim que comecei a estudar português. Nunca mais parei”, relembra esta indiana nascida em Ambala, estado do Haryana.
Através de uma bolsa da Fundação Oriente surgiu a hipótese de estudar em Coimbra, em 1993. “Com esta, são dez as vezes que vim a Portugal. A primeira vez foi para estudar em Coimbra. Era muito novinha. Vinte e poucos anos. Foi a primeira vez que saí da Índia. Foi um desafio muito grande, porque tive de lidar com muitas dificuldades sociais e linguísticas. Cresci muito nessa época”, diz. “Para a minha mãe foi um escândalo. Pediu para eu não andar sozinha, ‘tenha muito cuidado, queridinha’, dizia”, conta, divertida.
Foi já com muita experiência de viver fora, num país de língua portuguesa, que se instalou no Brasil para o doutoramento, acrescenta. Seis anos no Rio de Janeiro, a estudar um tema que continua a surpreender muita gente, admite: os palavrões na língua portuguesa.
“Sabe porquê decidi estudar os palavrões? Porque eu ouvia tantos palavrões que não se ensinavam no manual de português para estrangeiros. Um dia fui à Faculdade e vi escrito ‘porra’. Não entendi. Quando voltei para casa perguntei a um amigo brasileiro, que significa isso? Ele explicou, mas disse para eu não falar. Tudo bem, não falo. Mas depois, na estação do metro, no autocarro, todo o mundo falava. E também c…, m…. Então falei sobre a minha ideia de tema com a minha orientadora, uma professora perto de se aposentar, que me respondeu que não, que não achava bem. Passados dois dias, ligou-me e disse: ‘Vamos fazer.’ E assim foi”, conta, divertida.
“Não sei por que essas palavras têm de ser tabu”, sublinha esta indiana, que, além de obras de Pessoa e Saramago, traduziu o angolano Agostinho Neto, poeta que era médico e foi o primeiro presidente do país. Sharma tem também servido de intérprete de hindi/inglês-português para várias personalidades, incluindo o presidente brasileiro Lula da Silva, numa visita oficial à Índia.