A segunda vida de Fernando Pessoa: 'Batizo-te Vicente Guedes, herdeiro de Pessoa'
E se Fernando Pessoa regressasse ao presente sob o heterónimo Vicente Guedes, aquele que foi preterido como autor do Livro do Desassossego para Bernardo Soares? Um romance inédito de João Céu e Silva que o DN está a publicar em 12 capítulos.
75 anos após a morte de Fernando Pessoa aparece um homem em tudo igual ao poeta na esplanada do Martinho da Arcada. Chama-se agora Vicente Guedes, um dos heterónimos do poeta, quer voltar a viver na sua antiga morada, onde agora está a Casa Fernando Pessoa, e assume-se como o seu herdeiro literário. Alguém o está a ensinar a ser Pessoa, recuperando os ensinamentos do poeta W.B. Yeats , de Ian Fleming e Somerset Maugham, três autores enganados pelo mago Aleister Crowley. Vicente Guedes sai do Freixo, com a incumbência de comprar certas peças no leilão do espólio deixado por Fernando Pessoa, mas é no arquivo na cave do Diário do Notícias onde encontra a explicação para o suicídio de Aleister Crowley na Boca do Inferno.
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Da Boca do Inferno sai Vicente Guedes
Entre as várias descrições sobre o inferno, Dante terá escrito a mais fantasiosa no poema A Divina Comédia. Gostaria de não poder confirmar esta afirmação mas, ao atirar-me para o buraco negro da Boca do Inferno, a memória que me atravessou a mente, a par de um frio húmido que esfriou as extremidades do meu corpo expostas às correntes de ar que rodopiavam no seu interior, foi a desse poema. Os poucos segundos passados entre o momento em que perdi o pé e aquele em que me afundei na água foram os suficientes para reler a Comédia até ao penúltimo dos seus nove cantos, aquele que Dante intitulou como Fraude. Não terá sido por acaso que cheguei até esta parte da obra, afinal o nome destacava-se entre os outros oito cantos: Limbo, Luxúria, Gula, Inveja, Raiva, Heresia, Violência e Traição. Talvez porque o meu pensamento sobre a Besta e Sena contivesse mais a sensação de que estas duas pessoas eram as que melhor representavam a Fraude do que qualquer outro dos comportamentos descritos no poema. Talvez se a queda tivesse demorado mais alguns segundos eu mudasse de opinião e encontrasse um paralelo para Traição em relação às duas personagens ou até para Heresia. Mas o peso do meu corpo e o efeito da gravidade não o permitiram.
Na Divina Comédia, Dante iniciava o seu inferno desorientado e perdia-se. É o poeta romano Virgílio que vai guiar a sua alma até Deus, reconhecendo e rejeitando o pecado. No canto até aonde cheguei, o tema é a consciência da fraude e chega-se lá também por um caminho descendente como era o meu. Sobre o dorso de um monstro alado com três cabeças e corpos interligados, que representam a natureza humana, a besta e o réptil. Ao terminar o percurso, Dante e Virgílio deparam-se com um ser que tem uma cabeça de homem honesto num corpo de um ser mitológico e, em seguida, confronta-se com os pecadores que conhecem bem a mentira e a maldade. Ou seja, estão perante os que deliberadamente cometeram todos os erros possíveis à natureza humana.
Não terá sido por acaso, se quero acreditar no acaso, que atingi esse oitavo canto do poema. Era o capítulo que me interessava para compreender a situação em que me colocara ao atirar-me por vontade própria para a Boca do Inferno, após um ano de pecados vivido a soldo do meu anfitrião. Eu estava na posição de Dante, se me é permitido fazer esta comparação, quando se põe como protagonista do seu poema. Tínhamos ambos 35 anos e estávamos a meio do tempo bíblico para a duração da vida humana. Também estava perdido e sem encontrar a ansiada via correta que conduzisse à salvação - no meu caso, uma procura diferente da do poeta. Estávamos, no entanto, conscientes no protagonizar de um momento negro das nossas condutas, que nos deixava perdidos.
Mas Dante tem uma esperança, já que Beatriz pede a Virgílio que o conduza pela caverna perigosa e confia que a justiça poética o salve, enquanto eu não tenho a mesma sorte. Nem existe uma mulher apaixonada por mim, nem um poeta romano para me estender a mão e salvar do castigo que tenho pela frente por me ter atirado para dentro da garganta negra da Boca do Inferno. E se na Divina Comédia era claro o aviso de que quem utilizava expedientes errados perdia em consciência o direito ao futuro, ou não era por acaso - se o acaso existe - que à entrada do inferno estava uma inscrição que alertava os que ali entravam para abandonarem toda e qualquer esperança.
A grande diferença entre nós é que em 1300, a data em que o poema se passa, Dante não podia desafiar as crenças, mas ultrapassado o ano 2000, esse era um desafio bem mais fácil. Mesmo que a minha situação não fosse invejável noutros seres humanos, já que todos os que se tinham atirado para o interior da Boca do Inferno aí tinham ficado. Não fora o caso de a Besta porque simulara um suicídio. Fora o caso de Sena, visto que ainda não se descobrira o que lhe acontecera, apesar de nenhum corpo ter aparecido para confirmar a sua morte. No meu caso, que era o mais importante neste momento, o meu corpo ainda estava em queda livre e eu, inesperadamente, aproveitava os últimos momentos de vida para recordar um antigo poema.
O mergulho na água que esperava por mim no fundo da Boca do Inferno veio interromper todos estes pensamentos. Estava fria, podia mesmo dizer-se que a noite gelara a água que esperava pela queda do meu corpo. Mesmo assim tivera sorte porque as correntes de vento não me empurraram contra as paredes rochosas e permanecia sem uma única ferida. Também porque a maré estava alta e a viagem fora menor do que em hora de maré baixa, o choque contra a superfície da água não me partiu um osso sequer. Foi percetível o momento exato em que senti o mar entrar em mim e eu a entrar nele, porque deixei de ver as estrelas no céu. A partir desse instante era a escuridão e o frio que dominavam os sentidos em alerta, segundos em que nem tentei mexer os braços para vir à superfície. Antes de saltar decidira que o que ia fazer estava para além do meu controlo e, portanto, cabia-me aguardar pelos acontecimentos sem intervir neles.
Tudo se passou mais depressa do que alguma vez poderia imaginar. Uma vaga vinda do mar entrou pela Boca do Inferno com bastante violência e levou-me consigo. Fez-me ascender os metros que antes tinham sido de queda livre e, como se fosse uma mão, atirou-me de volta ao lugar de onde eu me atirara antes numa fração mínima de tempo. Caí de pé e cambaleei, sem saber o que estava a acontecer, só compreendendo que ficara fora de perigo porque revia as estrelas por entre os fios de água que escorriam dos cabelos pela cara e de todo o corpo para o chão.
Sentei-me sobre a poça de água salgada e sorri o quanto era possível num rosto a tremer de frio. Tinha sobrevivido! Logo que me foi possível, pus-me de pé e fugi em direção ao carro a passo de corrida, deixando a Boca do Inferno para trás. A minha grande dúvida era o que significava tudo isto. O que me acontecera? Qual o próximo passo a dar? Contar ou silenciar o milagre se verificara?
Não foi difícil entender que havia uma razão para o milagre e que existia alguém para o explicar. A jovem que me satisfizera sexualmente no Freixo estava sentada ao volante do Chrysler, como que a aguardar por mim e soubesse que eu estaria para aparecer-lhe. Perante o meu espanto, ainda tive a capacidade de pensar que havia mais uma semelhança entre mim e Dante: Beatriz. Era assim que também se chamava a jovem de quem eu nunca soubera o nome e que ao ver-me sorriu e apresentou-se.
Após ter ensopado a pequena manta com a água salgada que me fazia tremer de frio deu-me um casaco. Em seguida, Beatriz conduziu-me de volta a Lisboa. Não falou muito durante a viagem, tão concentrada estava a conduzir o carro enorme. E eu imitava-a, ocupado com os pensamentos sobre o que acontecera na Boca do Inferno. Ainda não estava refeito do que se passara, até que as suas palavras me fizeram regressar ao momento que vivíamos.
- Preparado para viver a segunda vida que lhe foi dada?
Seria isso que tanto a Besta como Sena procuravam ao ter saltado para dentro da gruta negra, perguntei-me durante os momentos de silêncio que se seguiram. Beatriz guiava agora com mais velocidade, pois deixara a marginal e entrara na autoestrada, mesmo que mantivesse toda a atenção na condução.
- Não me responde?
Ela aguardava por uma resposta, mas eu ainda estava incapaz de a dar. As sensações eram superiores à realidade e o frio que ainda me fazia tremer não me permitia recuperar o sangue-frio assim tão rapidamente. Para ela seria fácil dominar qualquer efeito perante a surpresa que eu vivera, já que parecia conhecer o guião do que me acontecera nas últimas horas. Daí, ter-lhe perguntado se não preferia ser ela a falar, clarificando o que estava a acontecer em vez de me deixar submergir pelas perguntas que me assaltavam.

Placa que assinala na Boca do Inferno o falso suicídio de Aleister Crowley
© DR
Beatriz nada respondeu, mantendo a sua atenção no trânsito que crescia conforme entrávamos na cidade e que continuou intenso até chegarmos ao local pretendido. Um hotel, o velho Francfort, era o nosso destino. O estabelecimento onde a milionária Peggy Gugenheim tinha pernoitado por umas poucas noites durante a sua estada de dois meses em Portugal e no qual o pintor Max Ernst tinha permanecido hospedado o tempo suficiente para obter os documentos que lhe permitissem fugir para os Estados Unidos desde uma Europa perigosa para os perseguidos pelo regime de Hitler. Perguntei-lhe o porquê de ficarmos no Hotel Francfort e a resposta surgiu-lhe rápida, se bem que com um sorriso de alguma malícia. Disse-me que ambos, Peggy e Max, tinham feito amor junto à Boca do Inferno num tempo em que o local era menos turístico e as sombras suficientes para os sexos de ambos se trespassarem sem serem vistos por olhares curiosos.
- Como não o poderíamos fazer na Boca do Inferno, escolhi o hotel deles para o nosso reencontro. Não foi uma boa ideia?
Esta Beatriz não perdia tempo em conversas vagas como acontecia com outras mulheres, nem em silêncios incómodos como os que mantinha antes no Freixo. Conduziu-me para a receção mal estacionou o veículo perto da porta do hotel, não sem antes pendurar a pequena manta molhada no puxador da porta para ficar a secar. Era uma mulher organizada, via-se, aquela que me acompanhava nesta segunda parte da minha vida. Pediu a chave do quarto que já reservara e, com ela numa mão e a minha mão na outra, percorremos os corredores até ao quarto.
Era uma divisão não muito grande, de onde se poderia ver o Rossio se ela não tivesse corrido a cortina, despido as minhas roupas ainda molhadas e atirado os nossos corpos sobre a cama, com a doçura possível a um casal dominado por uma excitação sexual em crescendo. A sombra em que o quarto ficara era ainda suficiente para que ao despir o seu vestido eu recordasse o corpo que me coubera durante o ano anterior em casa do meu anfitrião. Estava igual, não fosse mantê-lo em parte escondido por um corpete que lhe aumentava o tamanho do peito enquanto deixava a descoberto o ventre. Ainda reparei que essa parte de baixo do corpo estava diferente, pois Beatriz fizera uma depilação e exibia-se como fora em menina. Nada que me perturbasse o desejo por ela, mesmo que fosse uma situação que eu desconhecia em mulheres adultas até esse momento.
- É a última moda. Gostas assim?
Claro que lhe respondi afirmativamente, enquanto sentia o calor do seu corpo a aquecer o meu. De pouco me importavam agora certas particularidades no seu corpo, teria tempo para me debruçar nessas questões se houvesse necessidade em as questionar. Agora, o que eu estava era necessitado de esquecer o frio que se entranhara fundo nos ossos após o mergulho nas águas atlânticas!
Se a sua pergunta, sobre se me importava com a ausência daqueles pelos, não me causara qualquer questão, o mesmo não acontecia com a onda de calor que o corpo de Beatriz devolvia ao meu. Antes de me conseguir entregar por completo ao seu processo de aquecimento, lembrei-me que estava a viver uma situação parecida como uma que lera há muito num romance, onde existia um capítulo no qual o escritor relatava a história de uma judia que era utilizada para reanimar paraquedistas que caiam no mar gelado durante operações militares. Os alemães testavam até que ponto era irreversível a morte dos seus soldados experimentando o processo com prisioneiros que enfiavam dentro de tanques de água gelada, retirando-os no momento limite e obrigando a personagem feminina a abraçá-los nua, reanimando-os com o calor do seu corpo. E se alguns desses prisioneiros morriam, os que voltavam à vida - essa era a parte pior do relato - acabavam por violar a mulher que os salvara.
A minha situação não fora até ao limite daquela que era relatada no livro. Não desmaiara com o frio, nem violava a mulher que me aquecia, era antes ela que exagerava a dimensão dos efeitos do meu mergulho numa quase encenação literária. Essa recordação de um livro lido há muito ainda permaneceu no meu cérebro por alguns segundos, mas depressa desapareceu, substituída pela imaginação de como teria sido se Beatriz tivesse resolvido imitar a ousadia sexual de Peggy na própria Boca do Inferno... Depois da sessão de reanimação, encaixámo-nos o corpo um no outro, meio-acordados, até que o ruído da cidade que entrava pelas janelas de madeira velhas se ter tornado trivial.
- Sentes saudades do Freixo?
Acordei com Beatriz a olhar para mim e, mal viu os meus olhos abrirem-se, a fazer-me essa pergunta. Não sabia o que lhe responder, nem estava preparado para uma interrogação assim. Afinal, o Freixo tinha sido um período obscuro na minha vida e sobre o qual eu ainda desejava descortinar as razões para ter acontecido. Mesmo estremunhado, pensei que ela estaria a abrir a porta para dar as explicações que me faltavam, ou não tivesse sido ela também cúmplice naquela continuada farsa do meu anfitrião. Não a indaguei imediatamente, nem lhe respondi à pergunta sobre o Freixo. Se Beatriz tinha jogado a carta da mudez durante aqueles tempos, era agora a minha vez de retribuir.
Tal como eu previra, o meu silêncio espicaçou-a. Havia em Beatriz vontade de contar a sua própria história e em devolver-se à realidade ocultada por Sena tão cuidadosamente. Pedi-lhe antes que me falasse de Peggy Gugenheim e da sua passagem por Lisboa, que tão bem parecia conhecer. E foi ao som das suas informações, ditas num tom de quem lera enciclopedicamente sobre o assunto e as repetia, que fui acordando: "Terá sido a época mais cosmopolita de Lisboa, o porto de onde todos queriam escapar do inferno nazi em direção a Nova Iorque. O escritor Antoine Saint-Exupéry hospedou-se no Estoril, tornou-se notado por ter dado duas conferências, nas quais partilhou o seu sofrimento com a plateia, mas mal pôde partiu, partilhando o camarote com o realizador Jean Renoir, que voara para cá desde o norte de África; o pintor Marc Chagall ficou menos de um mês na capital e pouco revelou sobre esses tempos; o escritor Arthur Koestler fez um romance autobiográfico, inspirado nos seus passeios entre a pensão rasca onde dormia, a Leiriense, e o café Chave D"Ouro, no Rossio. O fotógrafo Man Ray ainda tirou fotografias a mulheres portuguesas numa feira, que nunca foram vistas porque lhe roubaram a máquina durante a viagem transatlântica. E a Peggy namoriscou com o amante e futuro marido, Max Ernst, divertindo-se com loucuras que a distraíam neste exílio português e numa atitude libertina que a tornavam alvo do interesse da polícia política. Na vez em que fez amor com o Max na Boca do Inferno, tomaram banho à meia-noite, ela nua e ele preocupado se ela se afogava no mar e o deixava abandonado à sua sorte. Nas suas memórias, a Peggy ainda confessou que essa sua época fora bastante estranha." No fim do discurso enciclopédico, Beatriz perguntou-me se no futuro algum de nós iria escrever as suas memórias e fazer confissões do género de "aqueles dias no Hotel Francfort foram bastante estranhos".
O nosso dia começou tarde e o salão onde serviam o pequeno-almoço já estava fechado. A fome obrigou-nos a abandonar o hotel e a procurar um restaurante para almoçar. Beatriz estava com apetite e eu não lhe ficava atrás, tendo ambos decidido que uma torrada e um café não seria o suficiente para nos matar a fome e recompor as energias. Mas não nos apetecia ficar por perto, antes fazer a refeição num lugar mais romântico e onde pudéssemos passear.
- Sintra, era o ideal!
Pensei que não suportaríamos a distância de estômago vazio e alertei-a para o facto. Entendi que queria mesmo ir até lá.
- Esta conversa de expatriados deu-me vontade de os imitar e Sintra é o lugar mais indicado para nos sentirmos como turistas.
Não lhe pude dizer que estava errada porque mentiria ou que dificilmente não chegaríamos famintos ao destino porque era uma verdade que não tinha interesse em escutar. Ainda por cima, Beatriz recusou ir no Chrysler, dizendo que estava na hora de passarmos despercebidos e que viajar nele seria um erro fatal. Alertou-me ainda para o facto de que ao encontrar-me a viver uma segunda vida, seria de bom tom cortar com o passado. Tinha razão, concordei, pois o carro era a minha maior ligação a Sena. Não pensei sequer se deveria desfazer do veículo, pois haveria nesse definitivo corte umbilical com o Freixo algo que me preocupava e que não poderia executar sem avaliar bem os prós e contras. Não é que desconfiasse das intenções da minha companheira, mas a decisão do meu anfitrião ao oferecer-me o Chrysler acarretaria uma implicação que eu ainda desconhecia. Aliás, ao ouvir o nome dele, pensei em como haveria muito para questionar Beatriz e demasiados mistérios para serem esclarecidos. Não teria sido casual a pergunta sobre se sentia saudades do Freixo que fizera ao despertar, nem inocente o desvio posterior de qualquer tema de conversa sobre a localidade. Claro que eu gostava de ouvir as histórias da Peggy e dos seus amigos, mas preferia ser informado sobre a sua ligação a Sena e as razões que estavam por trás da minha contratação. Sobre isso, Beatriz não deixava escapar uma única palavra! Para além de que já referira por duas vezes que eu ganhara uma "segunda vida", e também nada explicara sobre tal benesse. O que significaria esta "segunda vida" e qual seria o custo de ressuscitar? Ao pensar neste vácuo de informações que me interessava preencher, concordei que um almoço na típica Sintra seria o destino ideal e o momento certo para dar início à troca de informações que eu tanto precisava.
Beatriz pegou na minha mão e encaminhou-me para a estação de comboios do Rossio.
Disse-lhe que a viagem era longa, o suficiente para me contar a sua vida.
- Não é tão longa assim a viagem!
Expliquei-lhe que poderia começar pela infância, já que nenhuma era assim tão grande que não coubesse entre as estações de partida e de chegada do caminho-de-ferro que íamos percorrer.
- Tens razão, mesmo que a minha infância seja a parte mais melancólica da minha existência.
Perguntei-lhe qual era a menos melancólica.
- Com toda a certeza, a dos últimos três anos, desde que Sena entrou nela.
Pedi-lhe, então, que começasse por aí.
- Se te contar a partir do fim, nunca entenderás certas coisas.
Disse-lhe que nunca desistira de ler um livro só porque conhecia o desfecho.
- Então, assim será.
O comboio partiu e enfiou-se logo no túnel escuro de algumas centenas de metros, que eu olhei curioso e atento, dando-lhe algum tempo de vantagem para organizar a história.
- Nem sei por onde iniciar.
Continuei perdido na observação do túnel que ligava o centro histórico da cidade aos bairros mais modernos, ouvindo o chiar das rodas metálicas a rolar sobre os carris, produzindo algumas faíscas de tempos a tempos que iluminavam o percurso.
- Haverá por aqui fantasmas?
Será que ela tentava atrasar o início da sua história ou acreditava realmente que essas criaturas pudessem existir no túnel escuro? Uma coisa é certa, ninguém trabalharia para Sena se não tivesse dotes superiores em relação aos outros seres humanos no que toca a questões do oculto. Beatriz não seria diferente, até porque fora uma peça fundamental para o meu anfitrião me prender no Freixo. Ou seja, a sua história interessava-me cada vez mais.
- Já vês alguma luz ao fundo do túnel?
Que pergunta mais vulgar, mesmo que filosófica! Quase acreditei que ela estava com medo da travessia subterrânea e que demorava a principiar a sua história por essa razão. Que diabo, Beatriz parecia tão dona de si!
- Posso pedir-te para não te desvendar a minha vida hoje? Prometo que o farei em breve. E estou tão faminta...
O que poderia eu responder se não um sim, mesmo que contrariado.

A viagem decorria normalmente quando dei por mim a escrever um poema no bloco que retirara da mesa-de-cabeceira do Hotel Francfort. Era a primeira vez que sentia vontade de expressar o que pensava pela via literária, sob um género que só utilizara - como todos os jovens - quando era mais novo. Escrevera os meus versos, palavras para expressar o que me era incompreensível e desabafos de amor, frases sem grande préstimo e de que há muito me desfizera. Enquanto o comboio marchava, pensei em como teria sido bom ter vindo no carro e com direito a outra paisagem que não a de arrabaldes citadinos sem interesse algum. Ao volante do carro poderia fazer desvios e procurar vistas mais bonitas. Ser mais dono da viagem e descobrir velhos casebres perdidos entre as florestas onde tenham morado pessoas há muito ou observar a lua quando ela se elevasse por detrás das árvores. Como teria gostado de guiar o Chrysler por esta estrada tão cheia de curvas e cheirar os aromas dos bosques que surgiam de repente, após voltar à direita ou à esquerda, por entre os muros que ladeavam o asfalto. Meter à pressa uma mudança mais baixa para enfrentar a subida ou reduzir a velocidade da descida, acelerar e sentir o vento a rasar a cara. Fazer deste percurso sinuoso uma réplica da minha vida, com as alegrias e as tristezas que tinha na memória. Reparar nas coisas que me fizeram ser assim e tornar romântico aquilo que desse sentimento nada tinha, bem como sorrir aos pastores à beira da rua e ver os vestidos garridos das mulheres. Gostar de ser prisioneiro de um caminho que era apertado para o carro e que precisava de ser feito com todo o cuidado, como se fosse uma alegoria da vida real. Conduzir como um doido para fugir das regras do código e ser o eu que tantas vezes me escapava, com raparigas a olhar invejosas da minha habilidade ao volante e rever-me nos miúdos que espreitavam o carro em grande velocidade. Travar para chegar só de noite, quando estava menos distante dos outros e mais perto de mim, sem me sentir só e distante das vidas normais. Foram todas estas sensações que me caíram em cima e que iam sendo passadas ao papel sem o ter previsto, enquanto era obrigado a seguir um caminho-de-ferro que não permitia procurar outros destinos que não o pré-determinado pelos carris paralelos, presos há muito tempo às tábuas de madeira que os suportavam sobre uma estrada de pedra...
Os versos que escrevi foram estes: "Ao volante do Chrysler pela estrada de Sintra, / Ao luar e ao sonho, na estrada deserta, / Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco / Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça, / Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo, / Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter, / Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir? / Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa, / Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. / Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência, / Sempre, sempre, sempre, / Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma, / Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida... / Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante, / Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram. / Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita. / Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas! / Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou! / À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada. / À direita o campo aberto, com a lua ao longe. / O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade, / É agora uma coisa onde estou fechado, / Que só posso conduzir se nele estiver fechado, / Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim. / À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto. / A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. / Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. / Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima / Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real. / Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha / No pavimento térreo, / Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga, / E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi. / Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa? / Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio? / Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, / Guiando o Chrysler emprestado desconsoladamente, / Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço, / E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível, / Acelero... / Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo, / À porta do casebre, / O meu coração vazio, / O meu coração insatisfeito, / O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida. / Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante, /Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação, / Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, / Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim..."
A minha companheira de viagem olhava discretamente para o que estava a escrever e eu sentia que, se lhe fosse possível, leria cada letra e palavra ao mesmo tempo que as desenhava sobre as folhas de papel. Mas mantinha-se ao meu lado como se nada se passasse, a fazer-se distraída e evitando distrair-me, e nem quando eu dei por terminado o poema ela me pediu o ver. Consciente da sua curiosidade, perguntei-lhe se queria ler os versos que escrevera antes de chegarmos à estação ferroviária de Sintra ou se preferia que eu os mostrasse num local menos popular do que a carruagem em que viajávamos.
- Talvez o melhor local fosse o Palácio da Pena. Sim, era aí que eu gostaria de ler o que escreveste.
A intimidade entre mim e Beatriz crescia a olhos vistos. Se já abandonara o seu irritante comportamento de silêncio no Freixo, e tentara várias vezes tratar-me de um modo mais informal, foi a partir deste momento que a senti mais próxima. Gostei de a ouvir dizer "o que escreveste" em vez de uma outra fórmula que mostrasse menos proximidade entre dois amantes de cama. Rapidamente entendi que essa alteração no seu comportamento não se devia ao acaso e que iria ser na esplanada do palácio, de onde se via uma paisagem a perder de vista, que ela passaria da dissimulação à ação.
Enquanto escolhia o almoço, ela leu o poema que eu escrevera no comboio. Leu-o com toda a atenção e tomou até algumas notas... Reparei nesta sua atitude enquanto consultava as especialidades à disposição dos visitantes do Palácio da Pena, numa lista que incluía desde as simples sanduíches até a um mais complexo Bacalhau à Gomes de Sá ou um bife com batatas fritas, o que escolhi para ambos... Depois, consultou um livro que estava dentro da sua bolsa e sorriu... Foi aí que lhe perguntei o que se passava e que, não tendo obtido uma resposta imediata mas apenas um sorriso, ela continuou a ler o meu escrito com toda a atenção... Espreitei disfarçadamente e confirmei que enquanto lia o poema o cotejava com um outro impresso no livro que retirara da mala há pouco... Manteve-se assim por mais alguns minutos, até que o sorriso sóbrio da leitora atenta se transformou num mais rasgado e ouvi-a fazer um breve e estranho comentário.
- Estamos a ir no bom caminho. Sena tinha toda a razão!
Fomos interrompidos pela chegada dos bifes e, sem qualquer feminilidade, Beatriz atirou-se à comida com toda a voracidade. Entre uma e outra batata frita e bocados de bife, perguntei a Beatriz se iria partilhar comigo os seus pensamentos. Principalmente, questionei o que queria dizer com a afirmação "Sena tinha toda a razão". Não me respondeu à pergunta, antes desviou o tema da conversa para a beleza de Sintra e de como ela tinha impressionado o poeta Lord Byron - "Ai de mim! Qual a pena ou pincel pode reproduzir metade das suas belezas" - e o compositor Richard Strauss - "Conheço a Itália, a Sicília, a Grécia, o Egito, e nunca vi nada que valha a Pena" -, entre outras citações que foram atrasando a resposta.
Quando a refeição chegava ao fim, reafirmei a minha curiosidade e critiquei a constante ausência das suas respostas. Disse-lhe que se negara a contar-me parte da sua vida quando iniciáramos a viagem de comboio mas, mesmo assim, eu mostrara-lhe o poema. Que o examinara com todo o cuidado é verdade, mas mesmo assim não fizera comentários sobre o meu trabalho poético. Que era sempre eu a falar, e mesmo sabendo que era falso, disse-lhe que parecíamos estar a voltar aos tempos da jovem do Freixo em vez de avançarmos na relação. Estas acusações não a preocuparam, pelo contrário, riu-se de mim.
- É sempre tão apressado!
E acrescentou, para me irritar:
- Não tratava assim o Sena!
Achei que o nome do meu anfitrião estava a vir demasiadas à conversa e acusei-a de manter entre nós a sombra do desaparecido na Boca do Inferno. Alertei-a também de que tinha voltado a tratar-me na terceira pessoa e que isso não era bom sinal. Até lhe disse que se não desejasse a minha companhia, poderíamos regressar cada um por sua vez e que eu procuraria outro hotel para dormir nessa noite.
- É tão divertido vê-lo assim enervado! Acalme-se, não vê que temos muito para falar e é-me difícil começar assim de um momento para o outro.
Ainda explicou que o sorriso que me incomodava era mais um sinal do seu próprio nervoso do que uma atitude contra mim.
- Deixe-me só acabar o bife. Estava mesmo cheia de apetite e a fome não é boa conselheira.
Comi o que restava no meu prato e perdi o olhar na paisagem que, com o bom tempo que fazia, se podia observar do Palácio da Pena até bem distante. Após termos tomado o café, Beatriz deu-me a mão e convidou-me a passear. Ainda a avisei que estava em falta nas explicações que lhe pedira, respondendo-me que falaria tudo o que eu desejasse enquanto passeávamos pela floresta, no caminho em direção à vila.
Após ter ouvido as suas explicações durante esse passeio fiquei sem saber se deveria ter pressionado tanto Beatriz ou se teria preferido escutá-las quando estivesse mais preparado para saber o significado de Sena ter razão e de eu ter tido direito a uma segunda vida. De mão dada, deixámos o palácio pelo Vale das Camélias e entrámos no Parque da Pena, passeando entre várias árvores - principalmente araucárias imbricata excelsa e brasiliensis -, pinheiros de várias espécies e outros arvoredos e plantas, até chegarmos à Fonte dos Passarinhos. Foi aí que me revelou o que eu pensava querer saber e que resumo deste modo: "Inicialmente, o seu contrato com Sena tinha por objetivo ajudá-lo nas pesquisas sobre a Besta. Apesar de muito culto, Sena não tem grande capacidade para transpor as suas investigações sob forma literária. Daí ter procurado alguém que fosse capaz e o tivesse escolhido por sugestão de algum seu conhecido - não sei quem foi! Quando lá chegou, Sena apreciou o seu trabalho mas, mais do que isso, achou-o muito parecido a nível físico com o Fernando Pessoa. Com o passar do tempo, foi mais longe e percebeu que a sua mente não era assim tão diferente da do conturbado poeta. Só desconhecia era se tinha uma verve poética e um espírito perturbado como Pessoa, situação necessária para a missão a que Sena se tinha obrigado nas últimas décadas e para a qual tanto trabalhou. Mesmo não sabendo se era compatível - desculpe esta palavra - com a diversidade heteronímica do poeta, ele considerou-o apto no fim do contrato para fazer um teste que o tornaria sucessor de Fernando Pessoa. E não o fez sem ponderar bastante se estava à altura da reencarnação pessoana, tendo criado várias situações para aferir as suas capacidades mentais e criativas. Pelas quais foi passando sem problemas de maior e sempre superando as expectativas do próprio Sena."

© Vítor Higgs
Enquanto ouvia estas explicações, o meu cérebro praticamente paralisou de tão escandalosas que as considerava. Queriam dizer que todo o meu trabalho junto de Sena não fora mais do que um teste para saber se eu era parecido com Fernando Pessoa? Que loucura! Se já considerava que o meu anfitrião era estranho, tal como tudo no Freixo, depois de ouvir estas primeiras palavras ainda mais perplexo ficava. Mas Beatriz não me deixou fazer completar o balanço e continuou a debitar revelações: "Se fizer um regresso ao que foi o seu ano junto de Sena vai reconhecer que aconteceram muitas coisas estranhas. Dou-lhe um exemplo, o seu primeiro teste: a viagem a Londres. Foi nessa cidade que Sena confirmou os seus dotes psíquicos através de uma iniciação dentro do túnel que atravessa o fundo do rio Tamisa. E saiu-se bem, mesmo que depois não se recordasse do que verdadeiramente lhe acontecera. Não se deve lembrar porque na maior parte do tempo em que esteve junto de Sena, ele mantinha-o hipnotizado e fazia-o ouvir os relatos sobre a vida e a obra do Fernando Pessoa, inserindo-os na sua mente como se estivesse a programar um computador. O mesmo aconteceu com as sessões em que a funcionária de Sena, imitando a mulher o W.B. Yeats, lhe ditou dezenas de páginas com testemunhos de atos de magia negra e de parapsicologia acontecidos no passado para lhe incorporar o sentimento de mediunidade que Pessoa jurava ter... Por fim, mesmo que ainda falte muito para lhe contar tudo o que lhe fizeram, não foi por acidente que Sena o encarregou da recuperação da arca no leilão, é que ele queria torná-lo responsável pelo espólio do poeta e introduzir-lhe a vontade de revelar ao mundo originais que nunca viram a luz do dia e que estão na sua posse."
Ouvia as sucessivas confissões de Beatriz e cada vez ficava mais espantado com o que me tinham feito sem conhecimento e autorização durante um ano. Mas a revelação do objetivo da minha missão ainda estava para ser anunciado: "O que Sena pretende é fazê-lo passar por Fernando Pessoa." Ao escutar este desígnio, não consegui deixar de rir até me engasgar. Após ter recuperado a serenidade possível, para o que contribuiu em muito estar junto à plácida Fonte dos Passarinhos, perguntei a Beatriz se acreditava no que me estava a relatar? Ela respondeu que sim. Questionei-a sobre se alguma vez admitiram que eu não quisesse representar esse papel? Ainda acrescentei outra pergunta, se acreditavam que essa mistificação seria aceite pelas pessoas - para além dos especialistas pessoanos - quando fosse revelada ao mundo?
- Para isso é que eu cá estou! Essa é a minha missão.
Fiquei estupefacto e calei-me. Achei que era melhor deixar a conversa continuar e ouvir tudo o que Beatriz tinha sido incumbida pelo meu anfitrião de me comunicar: "Se não sabe, informo-o de que os seres humanos são muito crentes. E, temos a certeza, que após a perplexidade inicial, as pessoas acabarão por acreditar. Aliás, até começarei por lhe mostrar a si mesmo que já é o Fernando Pessoa. Diga-me porque é que escreveu durante a viagem de comboio um poema sobre a sua viagem a Sintra. Há quanto tempo não fazia versos? Não achou estranho esse desejo?"
Beatriz pegou no bloco e abriu-o nas páginas onde eu tinha escrito o poema. Perguntou se eu já alguma vez tinha lido esse poema antes? Respondi-lhe que não, que o inventara horas antes, não sabendo sequer como viera a inspiração. Ela continuou: "Foi essa súbita vontade de compor um poema que confirma que as artes ocultas de Sena funcionaram como ele garantia que iriam acontecer. Sabe que o Fernando Pessoa escreveu um quase igual em 1928, assinado pelo heterónimo Álvaro de Campos? Comparei-o com o original e confirmei que é igualzinho palavra por palavra, à exceção de que ao escrevê-lo cometeu um único erro: o poema chama-se Ao Volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra e não Ao Volante do Chrysler pela Estrada de Sintra. Mas, essa confusão deve-se a ter um Chrysler e ainda não ter cristalizado todos os ensinamentos que lhe foram transmitidos por Sena. O que será apenas uma questão de dias, garanto-lhe."
Não queria acreditar no que Beatriz estava a contar. Só que ao ver o livro onde estava o poema escrito por Álvaro de Campos fiquei sem argumentos. Realmente, eu escrevera uma poesia em tudo igual à da do heterónimo de Pessoa! E tinha a certeza de que nunca lera tal poema, nem jamais seria capaz de fixar verso a verso o que outros escreveram para o reproduzir como meus.
Beatriz olhou-me e viu como eu estava baralhado. Abraçou-me e repetiu que estava junto de mim para me ajudar a cumprir a missão.
- Não será difícil. Todos gostariam que Fernando Pessoa tivesse uma segunda vida e vão ficar tão satisfeitos que o reconhecerão como tal.
Ainda havia algo mais para eu saber, já que a revelação estava incompleta. Por mim, tão espantado estava, teria ficado satisfeito com o que me fora dito: "Como seria pouco crível que se intitulasse Fernando Pessoa, ou qualquer um dos heterónimos mais famosos, como Álvaro de Campos, Ricardo Reis ou Bernardo Soares, Sena decidiu escolher um que ficou pelo caminho: Vicente Guedes. Para que não se sinta diminuído, informo-o de que foi a este heterónimo que Fernando Pessoa atribuiu primeiramente a autoria do Livro do Desassossego em 1915 e que só em 1929 é que o entregou a Bernardo Soares."
Como querendo criar uma metáfora para o meu (re)nascimento, Beatriz enfiou a mão na água da fonte e disse:
- Eu te batizo Vicente Guedes, herdeiro de Fernando Pessoa.
Abraçou-se a mim e sussurrou o meu novo diminutivo.
- Vicentinho... Tens tantos poemas originais à tua espera que não precisarás de copiar os dos outros heterónimos. Vais ser tão famoso!
Antes de me desabraçar, sussurrou de novo o meu diminutivo, acrescentando um pedido.
- Vicentinho... Gostava que deixasses crescer o bigode e passasses a usar um chapéu.
E não é que Beatriz tinha razão. A cada manhã que acordava na cama do Hotel Francfort era mais um dia em que me sentia menos eu e mais o poeta. Ela dera-me uma coleção de textos onde Pessoa descrevia o heterónimo enquanto acreditara na sua força criativa e eu ia apreendendo a nova personalidade. Diziam assim: "O meu conhecimento com Vicente Guedes formou-se de um modo inteiramente casual. Encontrávamo-nos muitas vezes no mesmo restaurante retirado e barato. Conhecíamo-nos de vista; descaímos, naturalmente, no cumprimento silencioso. Uma vez, que nos encontrámos à mesma mesa, tendo o acaso proporcionado que trocássemos duas frases, a conversa seguiu-se. Passámos a encontrarmo-nos ali todos os dias, ao almoço e ao jantar. Por vezes saíamos juntos, depois do jantar, e passeávamos um pouco, conversando. Vicente Guedes suportava aquela vida nula com uma indiferença de mestre. Um estoicismo de fraco alicerçava toda a sua atitude mental. A constituição do seu espírito condenava-o a todas as ânsias; a do seu destino a abandoná-las a todas. Nunca encontrei alma, de quem pasmasse tanto. Sem ser por um ascetismo qualquer, este homem abdicara de todos os fins, a que a sua natureza o havia destinado. Naturalmente construído para a ambição, gozava lentamente o não ter ambições nenhumas. (...) ...este livro suave. É quanto resta e restará duma das almas mais subtis na inércia, mais debochadas no puro sonho que tem visto este mundo. Nunca - eu o creio - houve criatura por fora humana que mais complexamente vivesse a sua consciência de si própria. Dandy no espírito, passeou a arte de sonhar através do acaso de existir. Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida... De Vicente Guedes não se sabe nem quem era, nem o que fazia, nem (...) Este livro não é dele: é ele. Mas lembremo-nos sempre do que, por detrás de tudo quanto aqui está dito, coleia na sombra, misterioso. Para Vicente Guedes ter consciência de si foi uma arte e uma moral; sonhar foi uma religião. Ele criou definitivamente a aristocracia interior, aquela atitude de alma que mais se parece com a própria atitude de corpo de um aristocrata completo. (...) As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4.° andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros. «Tout notaire a rêvé des sultanes»... Tenho um prazer íntimo, da ironia do ridículo imerecido, quando, sem que alguém estranhe, declaro, nos atos oficiais, em que é preciso dizer a profissão: empregado no comércio. Não sei como inserto o meu nome vem assim no Anuário Comercial.
[assinado]
Guedes (Vicente), empregado no comércio, Rua dos Retroseiros, 17 - 4.°"
A minha rotina alterara-se radicalmente. Agora, enquanto deixava crescer o bigode, e de chapéu sempre sobre a cabeça, ia sentar-me no Martinho da Arcada. Havia quem nem reparasse, mas eram muitos os que se divertiam com a minha presença ali, tão parecido que era com o poeta que frequentara o estabelecimento várias décadas antes. Escolhera aquele local para beber um licor de absinto e ser apanhado em flagrante delitro, situação que não desagradava aos proprietários do café. Pelo contrário, apadrinhavam a minha presença porque lhes gerava alguns lucros extra. Aliás, quando se aperceberam que a minha presença os colocava em rivalidade direta com a Brazileira, onde uma manada de turistas desembocava diariamente e de propósito para tirar fotografias junto à réplica metálica do poeta, passaram a oferecer-me o absinto e a manter reservada uma mesa estrategicamente colocada. Não me incomodavam por passar longas horas ali sentado, nem quando nada bebia do cálice e da garrafa que eram logo postos à minha disposição. A única pergunta que me foi feita era a de se não preferiria beber antes um vinho tinto, decerto porque era mais condizente com o passado do poeta. Respondi-lhes somente que Vicente Guedes optara pelo licor em vez do vinho.
O meu interesse ao sentar-me no Martinho da Arcada era apenas um, ter uma paisagem para pensar. Enquanto observava o rio em frente ao Cais das Colunas, pensava a minha nova existência e intervalava esta ocupação com a leitura de alguns trabalhos ensaísticos sobre Fernando Pessoa e a sua obra, bem como a dos heterónimos e ortónimos. Não lia esses livros sem os encapar com uma folha de jornal, evitando assim que quem passasse soubesse o que eu estava a fazer. Queria conhecer-me melhor, saber o que sobreviera ao tempo em que o meu heterónimo fora importante para o poeta e criar o esqueleto que suportasse a nova personagem.
Acreditava que a minha missão seria bem-sucedida, visto que a minha presença era desejada por todos os que me descobriam no café, mesmo que ao princípio pensassem que eu era mais um dos artistas que enchiam a vizinha Rua Augusta com imitações de figuras conhecidas ou em performances que lhes garantiam o sustento. Cheguei mesmo a falar com alguns desses artistas enquanto caminhava entre o Hotel Francfort e o Martinho da Arcada, já que esses - os mais receosos sobre a concorrência - chamavam-me e questionavam se a minha vida estava a correr bem com a imitação que fazia do poeta. A todos dizia que sim, trocando algumas palavras desinteressadas, mas sem esclarecer que não era um dos da sua espécie. Afinal, eu era o Poeta.
Na maior parte dos dias, sentava-me bem cedo à minha mesa. A meio da manhã, chegava Beatriz, que me fazia companhia durante algumas horas. Almoçávamos qualquer coisa e ela partia, enquanto eu ficava a remoer o Vicente Guedes. Quando esgotei o que havia de bibliografia e deixei de encontrar particularidades na paisagem que ainda fossem desconhecidas, perguntei-lhe o que se seguiria?
- A vida é sua. Está tudo nas suas mãos.
Fiquei satisfeito com a resposta, até porque queria iniciar esta segunda vida que me tinha dada, e ao poeta também, mas fiz-lhe ver que sem me entregar o conteúdo da arca com os inéditos do Fernando Pessoa eu nada poderia fazer. Já lhe dissera que escrever poemas de minha autoria seria uma empresa quase impossível e que copiar ou adulterar poesias de outros não estava nos meus planos.
- Claro, até porque não era esse o plano de Sena.
Ao ouvir da sua boca a palavra "era" sobre a vontade do meu anfitrião, decidi ganhar coragem e perguntar-lhe pela situação de Sena.
- Ele não teve a mesma sorte que o Vicente. Ao atirar-se para a Boca do Inferno aconteceu-lhe o que era previsível: morreu.
Um primeiro arrepio percorreu-me a espinha e, logo a seguir, um segundo calafrio repetiu essa sensação muito física. Ganhei consciência da minha situação, de que neste momento estava nas mãos dela e que, se fosse honesta, tudo correria de acordo com o plano pensado por Sena. Mas, se o não fosse, tornar-me-ia uma marioneta dos seus caprichos! O conhecimento que tinha de Beatriz fez pender a minha crença para a primeira opção, a de que seria fiel aos desejos do falecido.
- Volto a dizer-lhe que está tudo nas suas mãos. Diga-me o que pretende fazer e eu dir-lhe-ei se é possível executar de acordo com a sua vontade.
Mais uma vez ouvia-a falar comigo como o senhor isto e o senhor aquilo em vez de me tratar por tu ou pela forma carinhosa de Vicentinho. Deveria significar que estávamos a tratar de assuntos importantes e que se exigia a si própria algum distanciamento. Sugeri-lhe, então, que me desse 24 horas para pensar no próximo passo e que no dia seguinte acertaríamos as nossas vidas.
Quando eu lhe disse que "acertaríamos as nossas vidas", expressava-me assim porque estava plenamente consciente de que Beatriz estaria ligada durante bastante tempo à minha vida e que Vicente Guedes só se emanciparia quando estivesse a cem por cento induzido da personalidade do heterónimo. Recordei uma parte da biografia que Pessoa escrevera sobre esta sua personalidade para me certificar dos próximos passos, aquela em que diz: "As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4.° andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros."
Era um parágrafo que me esclarecia bem o facto de ser necessário esvaziar-me da minha vidinha de ajudante de guarda-livros - mesmo que na vida real tivesse sido professor até há bem pouco tempo - e da necessidade de dar o salto. Olhei o Tejo e pensei no poema que conhecia desde pequeno e que dizia que "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia". Ora, eu estava mesmo em frente ao Tejo, mas não era este o rio que eu queria ver correr, antes o da minha aldeia! Ou seja, disse para mim próprio, repetindo o tom amoroso de Beatriz: Vicentinho, chegou o momento de ires ver o rio que corre pela tua aldeia e deixares de ficar a observar o rio dos lisboetas.
Foi, então, que olhei olhos nos olhos Beatriz e lhe disse que estava na hora de darmos início à nossa viagem.
- O que quer dizer com isso?
Mesmo que perturbado com esta continuada forma de se me dirigir, principalmente numa altura em que eu mais do que nunca necessitava do seu apoio, respondi-lhe com o pensamento que elaborara sobre o Tejo e a minha aldeia. Como Beatriz não alcançou o significado da metáfora, pois escutara os versos com o peso poético do poeta e não com o significado que eu lhe quisera dar, fui mais direto e expliquei-lhe que iríamos viajar por algum tempo. Até ser o tempo de voltar e assumir o Vicente Guedes de forma clara, deixando-me de copos de absinto no Martinho da Arcada e de leituras sobre as várias facetas do poeta.
A jovem ficou a olhar para mim e pediu-me que trocasse por miúdos as minhas intenções. Sentindo que era o momento de a chantagear, de modo a saber um pouco mais da vida de Beatriz, coisa que tanto eu desejava, só lhe disse que faria a revelação depois de ela se me desvendar.
- O Vicentinho gosta de se aproveitar das situações, mas olhe que eu não sou nenhuma pateta.
E acrescentou que contaria a história que eu tanto queria ouvir logo que partíssemos. Não era agora, explicou, o momento para estar a falar de pormenores quando se preparava o lançamento da minha segunda vida.
- Como creio que vamos viajar, terei tempo para lhe contar tudo.
Em seguida, disparou a pergunta essencial: o destino. Tive que lhe confessar que ainda não o pensaram mas que o poderíamos decidir imediatamente se fosse essa a sua maior curiosidade.
- E não seria também a sua se fosse eu a dizer-lhe que estávamos de partida?
Tinha razão, mesmo que a estada no Freixo me tivesse congelado a vontade de fazer perguntas sobre o meu futuro e que, desde a experiência de quase um ano a trabalhar para Sena, aguardasse mais por ordens de outros do que de mim. Mas chegara o momento de ser eu a tomar a iniciativa e, assim sendo, decidi iniciar essa nova fase convidando-a a até ao lugar aonde eu anunciaria o nosso destino.
Após olhar uma última vez para a mesa onde me detivera tantos dias, encaminhámo-nos para a Rua Augusta. Percorremos a rua até ao fim, atravessámos o Rossio e metemo-nos pelas Rua das Portas de Santo Antão, até chegarmos à porta que dava entrada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Dirigi-me à receção e perguntei-lhes se tinham um globo terrestre? O funcionário olhou-me com alguma estranheza, talvez por não esperar a visita de Fernando Pessoa em pessoa, mas rapidamente recuperou, levando-nos até ao salão contíguo, onde se encontrava a reprodução esférica do planeta que eu procurava.
Beatriz ficou a olhar atentamente para todos os meus gestos. Experimentei rodar o globo e este suavemente se pôs às voltas. Funcionava bem, pensei, o que facilitaria a tarefa. Então, disse a Beatriz o que se iria passar: eu faria rodar o globo e, de olhos fechados, ela poria o dedo sobre a superfície e a terra que calhasse seria o nosso destino. Olhou-me incrédula e foi preciso que eu insistisse para aceitar o desafio.
O processo de escolher o nosso destino poderia não ser o mais sensato mas eu era incapaz de decidir por mim o próximo passo a dar. Antes de Beatriz aceitar partilhar o seu papel neste meu pedido, disse-lhe que Fernando Pessoa jamais o faria; talvez Bernardo Soares tivesse dificuldade em se decidir; Álvaro de Campos duvidasse do método e Ricardo Reis nunca avançasse numa loucura destas, mas seria como Vicente Guedes agiria. Pelo menos o Vicente Guedes que eu estou a criar e que estava cansado de ser o empregado comercial que Pessoa obrigara a viver num quarto andar do número 17 da Rua dos Retroseiros. Esse merdoso vai ser um herói e, como os nossos grandes heróis, vai abandonar o país e reencontrar-se. Depois, voltará e será reconhecido. É assim que gostam, é isso que lhes vou dar.
- Se é o seu desejo Vicentinho, vou apontar o dedo sobre o globo e o diabo que escolha!
Antes de pôr a bola terrestre a rodar, com Beatriz de dedo espetado, reparei que o salão da Sociedade de Geografia de Lisboa se enchera de pessoas vindas de outras divisões do edifício, curiosas sobre o que estava a acontecer. Notei que acompanhavam tudo o que dizíamos e fazíamos e, fundamentalmente, pretendiam conhecer em primeira mão o desfecho de uma escolha feita de modo muito pouco habitual. Houve mesmo um velho militar que disse em voz alta que desde os tempos do Serpa Pinto e do Capelo Ivens que não se assistia na Sociedade a uma atitude tão corajosa como a que presenciava. Achei que estava a exagerar, mesmo que a idade do senhor lhe permitisse fazer essa afirmação com alguma verdade histórica... Aliás, foi ele que minutos depois de se ter sabido o nosso destino fez questão de nos entregar um opúsculo, com um ar bem antigo, que continha a descrição detalhada do local para onde iríamos.
A bola rodou a grande velocidade tão forte foi o empurrão que lhe dei. Beatriz mantinha-se especada e de dedo pronto a apontar mal o globo diminuísse a corrida em que eu o pusera. Exigi-lhe que fechasse os olhos e encaminhei-a para bem próximo da Terra em rotação, sentindo nas minhas mãos a erótica sensação das suas costas. Beatriz mantinha-me o desejo pelo seu corpo sempre vivo, fosse ela a mulher submissa quando entrara na minha vida e se pusera à disposição como uma escrava, fosse agora como uma igual. O corpo da mulher que eu encaminhava em direção ao globo era o mesmo que se despira as vezes que eu sugerira no quarto da casa do meu anfitrião e me satisfizera como nunca outro antes fizera, só que numa postura diferente. Já me perguntara se a preferia na versão anterior ou nesta algumas vezes, e encontrara respostas diferentes conforme a ocasião em que me questionara. Por um lado, gostava de lhe dizer faça isto ou aquilo e não sentir qualquer indecisão. Por outro lado, apreciava esta sua atitude madura que encontraria em qualquer relacionamento normal, mesmo que mantivesse muitos dos resquícios de escravidão sexual. Acreditava que ainda a iria reencontrar numa outra versão um dia destes e, talvez, essa terceira fase surgisse dentro de momentos com a indicação do lugar para onde iríamos. Talvez...
Empurrei-a até à distância suficiente para que o esticar da sua mão permitisse ao dedo apontar o nosso destino geográfico. Ao ver que o globo já rodava a menos velocidade, disse-lhe para manter os olhos fechados e estar preparada para o gesto final. Segundos depois, fi-la sentir a pressão dos meus dedos nas suas costas e ela espetou o dedo sobre a superfície do globo. Foi a vez de trocarmos de situações, enquanto ela abria os olhos eu os fechava, porque queria ser surpreendido pela sua escolha aleatória, sem antecipar o continente ou o país que a menor velocidade da esfera permitiria adivinhar.
- Vicente! O nosso destino é a Baía da Traição.
O nome que anunciou nada me dizia. Baía da Traição? Onde fica? O que é?