O muito que se tem escrito sobre Anatomia de Uma Queda, ressalta a ideia de um filme sobre o espaço inescrutável de um casal e a verdade enterrada em cada um de nós, difícil de traduzir na língua do outro (já lá vou). Mas talvez ainda não se tenha dado a devida importância à narrativa em si como objeto de estudo: a história da queda que aqui acontece (um homem caiu, ou atirou-se, ou foi empurrado do cimo de um chalé) é trabalhada com o espírito de um romance, em que a sua protagonista, ela própria uma escritora, a certa altura se vê examinada em tribunal pela nudez das suas palavras num livro. Uma “prova” usada pelo advogado de acusação, que procura, através da especulação literária, sustentar o instinto que nos diz que aquela mulher é culpada. Sim, porque também nós estamos a ser julgados pelo filme, que pressente a forma como olhamos para a suposta frieza de Sandra (Sandra Hüller), personagem que se mantém pouco legível mas inquietante à perceção alheia... Isto para dizer que no centro de tudo estará a vertigem da narrativa que somos aos olhos dos outros; tanto por aquilo que exprimimos como pelas construções livres feitas sobre o território da incerteza que podemos representar..Esta que é a primeira obra verdadeiramente consistente e madura de Justine Triet – de quem por cá se estreou a boa comédia Na Cama com Victoria e o esquecível Sibyl –, surge, a pouco mais de um mês da cerimónia dos Óscares, como a ameaça mais séria ao poderio americano do Melhor Filme. Uma produção francesa, em grande parte falada em inglês, capaz de equilibrar o drama conjugal e de tribunal com o thriller, numa estrutura que tem como alicerce a sua atriz. Com efeito, a alemã Sandra Hüller contém na dita assombrosa ilegibilidade a força e fascínio de um filme que joga com a (potencial) ficção permanente das relações humanas..Quando a vemos pela primeira vez, sentada no seu chalé nos Alpes franceses, a dar uma entrevista a uma estudante, na qualidade de autora de renome, Sandra instala a atmosfera ambígua através de uma postura tão sedutora quanto incomodada – é que, algures num andar de cima, o marido pôs música em altos berros, impedindo que se ouçam devidamente uma à outra. A jovem acaba por se ir embora, e o filho do casal, um miúdo cego (que perdeu a visão num acidente), também sai para ir passear o cão. Ao regressar, encontra o pai estendido na neve à porta de casa, sem vida... Seguem-se as diligências necessárias, e desde o momento em que a morte é considerada “inconclusiva”, Sandra passa a ser a principal suspeita, em caso de homicídio, sem conseguir provar que ele caiu do sótão do chalé de forma acidental ou se suicidou..Na verdade, quando ela recorre a um amigo advogado para a sua defesa, nem sequer dá largas à hipótese de suicídio, mostrando-se protetora da ideia (lá está, a narrativa) que se pode formar sobre Samuel, esse marido até ali só visto em fotografias, ou morto. E a partir daqui, Triet põe em marcha o escrutínio gravítico desta mulher, que em tribunal se vai deparar com a gravação de uma briga arrasadora com Samuel – o único flashback do filme –, que o próprio registou sem o seu consentimento, para vir a usar num romance. Será que a discussão foi provocada para efeitos de “material ficcional”?.Entre marido e mulher.Voltamos então à índole romanesca de Anatomie d’Une Chute. A saber: parte do que o referido litígio revela tem que ver com o ressentimento profissional, uma vez que Sandra terá usado ideias de Samuel nos seus próprios romances (um tema já presente em Sibyl), secando a possibilidade de ele se destacar como escritor. Mas claro que estamos só focados numa das feridas deste casamento, sendo que as duas personagens implicadas – ele, francês, ela, alemã – não comunicam nas respetivas línguas maternas, servindo-se do inglês como plataforma de mediação, que nunca traduz plenamente a verdade mais íntima. Conquanto os coargumentistas do filme sejam os dois franceses, este cenário não se alheia do facto de esses argumentistas – a própria Justine Triet e Arthur Harari – serem marido e mulher, ambos profissionais a “competir” na indústria do cinema. Já agora, há qualquer coisa de coincidência poética, ou não, em termos visto Harari a interpretar um advogado de defesa n’O Processo Goldman, de Cédric Kahn, estreado há poucas semanas nas nossas salas...Mas então, Sandra matou ou não matou? Honestamente, esta não será a pergunta que interessa em Anatomia de Uma Queda. Triet, que com certeza viu Anatomia de um Crime (1959), de Otto Preminger, e Testemunha de Acusação (1957), de Billy Wilder, inspirou-se na conduta encorpada dos clássicos, subtraindo-lhes a febre americana e deixando as palavras e o não dito (justiça seja também aqui feita ao jovem ator Milo Machado Graner, na pele do filho cego) convergirem para uma consciência superior à resolução do mistério. Sem cair na expressão balofa das pistas que apontam em direções diferentes, para manter o espectador “engajado”, a realizadora escolheu a linha ténue e engenhosa da incerteza, que puxa a nossa atenção para a necessidade básica da narrativa. Convém ter sempre uma à mão, como kit de sobrevivência.