A pior pessoa do mundo

História de uma busca de identidade, Regresso a Seul, de Davy Chou, não se parece com nada dessa linha de dramas. Um filme cujo magnetismo se concentra na sua protagonista, Park Ji-min, um espírito livre.

Frédérique, ou Freddie, chega a Seul sem um objetivo claro. Tem um típico rosto coreano (com fisionomia de traços "antigos, ancestrais", como lhe dizem) mas não sabe pronunciar uma palavra da língua local. Em criança foi adotada por uma família francesa, cresceu nessa cultura, e durante a visita ao seu país de origem não mostra particular afinidade pelos valores orientais. Percebemos isso quando, num jantar com amigos que fez à chegada, ao explicarem-lhe que é falta de respeito pegar na garrafa e servir-se de uma bebida, em vez de deixar que seja outra pessoa na mesa a fazê-lo, ela, numa afronta divertida a tal reparo, pega na garrafa de soju, enche o seu próprio copo e bebe de um trago... Com um único gesto atrevido e rebelde, Freddie indica que não está ali para se integrar nos costumes ou observar as normas culturais, e nem sequer é certo se quer descobrir quem são os seus pais biológicos - eventualmente, acabará por se dirigir à agência de adoção que tem o seu processo.

Esta é a protagonista indomável de Regresso a Seul, uma jovem interpretada pela artista plástica franco coreana Park Ji-min, que surge como uma absoluta revelação no grande ecrã. O filme de Davy Chou agarra-se à sua energia pouco decifrável, espécie de caos controlado que não permite antecipar o que vem a seguir, e quando parece que estamos a entrar num drama sobre os efeitos tardios da adoção, ficam patentes os sinais de uma digressão identitária que vai eliminando, a cada passo, o programa tradicional dessas histórias. Quer dizer, quando Freddie vai ao encontro do pai e da família deste (sem obter resposta da parte da mãe), o que vemos não é alguém confortável ou sequer emocionada com a descoberta, mas sim ofendida com a ideia de "reformular" a sua identidade em função deste contacto com as raízes.

De resto, a sensação de desconforto e um jogo de atração definem o projeto de Regresso a Seul: por um lado, Freddie não procurou nem encontrou um lar no país natal, mas, por outro, não deixa de voltar a ele ao longo dos anos, como se um magnetismo agridoce atuasse sobre ela. Dividido em três atos, o filme dá conta dessa errância da personagem, que surge mais tarde como traficante de armas, qual figura gótica habituada à vivência noturna, e depois como funcionária corporativa, alguém com um pouco mais de maturidade, que se permite a um reencontro com o pai coreano...

Seja como for, Chou não encaminha o filme para uma arrumação das matérias da interioridade. O realizador franco cambojano mantém-se fiel à desordem do espírito da sua protagonista, que Park Ji-min encarna com toda a linguagem corporal, num estilo intrépido e melancólico. Ela é especialmente vibrante numa inesquecível sequência de dança solitária que tem qualquer coisa de nouvelle vague, como uma picada, um rasgo que nos liga à sua indefinição magoada. E aí, nesse retrato de alguém que não tem a certeza do que procura, Freddie não deixa de fazer lembrar a Julie de A Pior Pessoa do Mundo (criação de Joachim Trier), outra jovem adulta que liberta energia caótica numa busca pela identidade.

dnot@dn.pt

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