Por onde começar, quando o tema é a pele? Talvez pelo início de Hiroshima, Meu Amor (1959), com os corpos de Emmanuelle Riva e Eiji Okada abraçados numa nudez suada e coberta de cinzas, da qual, segundo as indicações do guião literário de Marguerite Duras, deveria “resultar um sentimento muito violento, muito contraditório, de frescura e de desejo”. Esse sublime filme de Alain Resnais, e o descrito primeiro plano que agora dá capa ao jornal de agosto da Cinemateca, remetem para a imensidão escondida no tecido que reveste o corpo humano; nele cabe, para além do desejo, a memória, o horror e todo um mapa de intimidade.Ora, como se refere no texto introdutório do ciclo À flor da pele, que este mês ocupa a programação da casa, a própria palavra “película” – base material do cinema – significa “pele fina”. O que nos leva ao romantismo da ideia: ver um filme é, antes de mais, a possibilidade de tocar o grande ecrã como quem toca o tecido do sonho, uma forma de pôr a nossa pele em contacto com outras texturas “cutâneas”, suaves ou ásperas, imagens imaculadas ou gastas pelo uso regular dessa mesma película.Ao longo de quatro dezenas de títulos, entre curtas e longas-metragens, clássicos e obras contemporâneas, dos irmãos Lumière a Todd Haynes, aqui está uma proposta especialíssima para as noites de verão em Lisboa, que inclui absolutas novidades na sala da Rua Barata Salgueiro: desde o thriller que lançou Christopher Nolan, Memento (2000), à Palma de Ouro de Abdellatif Kechiche, A Vida de Adèle: Capítulos I e II, passando por Debaixo da Pele (2013), de Jonathan Glazer, ou O Desconhecido do Lago (2013), de Alain Guiraudie, há vários momentos da história recente do cinema em primeira exibição na Cinemateca.O ciclo arranca esta sexta-feira, às 19h, com a brilhante, e muito sangrenta, curta de Martin Scorsese The Big Shave (1967), em diálogo com o Promessas Perigosas (2007) de David Cronenberg, mas é a sessão da noite (21h30), na esplanada, com Massacre no Texas (1974), de Tobe Hooper, que abre oficialmente a viagem pelos mistérios da pele. Perante um vasto território de escolhas, eis sete pistas para pôr na agenda: .MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL(Dia 2, 19h)Em jeito de prólogo divertido, Memórias de um Homem Invisível (1992) traz uma reflexão curiosa sobre a existência fundada no “visível”; ou o debate entre o analógico e o digital. Sem relação concreta com o romance de H.G. Wells, mas assente num conceito semelhante, eis a história de um executivo (Chevy Chase) apanhado num acidente laboratorial que torna o seu corpo invisível – isto pouco depois de ter conhecido a mulher dos seus sonhos (Daryl Hannah) num primeiro encontro demasiado físico... Com efeitos especiais usados de forma inteligente e económica, esta comédia de ficção científica acabou por ser um filme mal-amado pelo seu próprio realizador, John Carpenter (que sofreu com o controlo dos estúdios), mas, na linha do cinema popular americano, é um objeto mais do que interessante.Para quem procura a comoção surrealista de outra anomalia da pele, O Homem Elefante, de David Lynch, é o título ideal (dia 26, 21h30 – esplanada). . OLHOS SEM ROSTO(Dia 4, 19h / dia 19, 21h30 – esplanada)Obra soberba do francês George Franju, que permanece pouco conhecida, Les Yeux Sans Visage (1960) serve-nos elegantemente terror à Frankenstein, num misto de poesia e macabro. Os olhos sem rosto do título pertencem a uma jovem (Édith Scob) desfigurada num acidente de automóvel, a quem o pai, cirurgião plástico, tentará devolver a beleza recorrendo a métodos obscuros, que implicam a morte de outras raparigas... É a monstruosidade ao serviço da busca incessante pelo belo, fatalmente ligada ao maior órgão do corpo humano.Noutro conto do género, A Pele Onde Eu Vivo, de Pedro Almodóvar, a matéria sintética acrescenta outra camada psicológica/thrillesca ao trabalho de bisturi do cirurgião Antonio Banderas. Passa dia 4 na esplanada (21h30), e repete no dia 9 (19h). . A ESCRAVA(Dia 5, 21h30 – esplanada)No original intitulado Band of Angels (1957), este magnífico drama de verve literária foi muitas vezes comparado a E Tudo o Vento Levou, em parte por ter Clark Gable como um dos protagonistas. Baseando-se num romance de Robert Penn Warren, é, porém, nas referências de Faulkner e Emily Brontë que o cineasta Raoul Walsh parece ter encontrado a viva expressão melodramática das imagens. Aqui, a “escrava” é uma mulher branca (Yvonne De Carlo) que, após a morte do pai, descobre ser filha de mãe negra – nessa condição, será vendida à personagem de Gable, que por sua vez educou um jovem negro nos melhores colégios. Quem o interpreta? Sidney Poitier, admirável na sua alma turbulenta.Como seria de esperar, o tema da cor da pele atravessa vários outros filmes do ciclo, como Herança Cruel, de Elia Kazan (mais uma história de uma mulher afro-americana de pele clara), A Febre da Selva, do muito “epidérmico” Spike Lee, Watermelon Man, comédia racial de Melvin Van Peebles, ou Beau Travail, o grande filme de Claire Denis, a refletir a memória pós-colonial. . O SEGREDO DE FEDORA(Dia 13, 21h30 – esplanada / dia 22, 19h)Penúltimo filme de Billy Wilder, Fedora (1978) marca o regresso do mestre ao universo do icónico Crepúsculo dos Deuses, esse retrato de uma antiga film star obcecada com o eterno glamour do grande ecrã. Neste caso, Fedora é uma estrela sujeita à lógica dos novos tempos, confiantes no poder da cirurgia plástica, envolvendo-se num cruel esquema familiar que lhe permite manter, aos olhos do público, uma miraculosa aparência de juventude... Um velho William Holden também volta a este mundo de Sunset Boulevard e, como não podia deixar de ser, acrescenta aquele toque de personagem-argumentista com facilidade em percecionar uma boa história. Entre a vaga nostalgia e o pessimismo, Wilder filmou um poderoso requiem, sem contemplações. .MARTHA(Dia 13, 19h / dia 27, 21h30 – esplanada)Feito para a televisão, mas com o virtuosismo das mais apuradas obras de Rainer Werner Fassbinder “descendentes” do cinema de Douglas Sirk, Martha (1974) é um exemplo supremo do seu domínio da linguagem clássica, imiscuída com uma singularidade íntima. No centro está uma das atrizes regulares do cineasta alemão, Margit Carstensen, que interpreta uma mulher ultra controlada pelos pais, até passar para as mãos de um homem pior (Karlheinz Böhm, não por acaso, o ator de Peeping Tom), com uma abordagem doentia, masoquista, da vida doméstica. Numa das sequências marcantes do filme, Martha é “incentivada” pelo marido a apanhar um escaldão, que resulta num momento explícito de tortura da pele, esta quase sempre imaculada ao olho da lente... Há uma espécie de luxo visual em tudo isto. .TATUAGEM(Dia 20, 19h / dia 22, 21h30 – esplanada)A mulher-aranha e as tatuagens não são elementos estranhos à cultura japonesa. A primeira está relacionada com a literatura do período Edo, pródiga no tema da sedução e assassinato; as segundas são simplesmente uma prática ancestral e movediça. Ambas dão forma a este filme de Yasuzo Masumura – no original, Irezumi (1966) – adaptado de um conto de Jun'ichirō Tanizaki (por Kaneto Shindō, um senhor da arte fantasmagórica), que narra a jornada vingativa de uma mulher possuída pelo desenho de uma aranha. Isto é, a aranha que lhe foi tatuada nas costas, contra a sua vontade. Dono de um cinema carnal, transgressor e de imaginação erótica, Masumura assinou aqui um tratado sobre a assombração da pele.Outras propostas japonesas no ciclo: A Mulher das Dunas, obra-prima de Hiroshi Teshigahara, e a animação de culto Ghost in the Shell: Cidade Assombrada, de Mamoru Oshii. . ÊXTASE(Dia 30, 21h30 – esplanada)No último sábado do mês passa um clássico dos primórdios do erotismo no cinema: a revelação de uma jovem Hedy Lamarr naquele que é considerado o primeiro filme a representar um orgasmo feminino (pelo menos das cópias que sobreviveram ao tempo). Título da cinematografia checa, Ekstase (1933), de Gustav Machatý, põe em cena o desconsolo de uma mulher recém-casada, que vem a encontrar a aventura amorosa junto de outro homem. Sem poupar nas sugestões visuais, a base da fama escandalosa de Êxtase terá menos que ver com nudez do que com o modo como se manifesta a carga sexual da história. Curiosidade: na transição de Lamarr para Hollywood, exigiu-se que as cópias deste filme “maldito” fossem queimadas...A sessão abre com a curta-metragem Presente, de Francisco Valente, que, bem a propósito, dedica 14 minutos à narrativa sensorial de um beijo num dia de verão..Para redescobrir o grande cinema italiano.'The Naked Gun': quem salva a comédia?