A pandemia deu nova perceção à obra de Saramago e o centenário quer encontrá-la
A evocação do centenário de José Saramago já está em marcha, mas a passagem de mais um aniversário sobre a sua morte, a 18 de junho de 2010, fez com que se publicassem duas obras que recolhem muito do seu pensamento. Uma é novidade, Citações e Pensamentos, e a segunda a reedição de Nas Suas Palavras. Quanto ao programa das comemorações do centenário (a 16 de novembro de 1922), a imensidão de eventos é tanta que decerto recordará a todos o autor que considerava que "se o escritor tem algum papel, será o de intranquilizar". Se os dois livros focam aspetos do escritor enquanto autor e cidadão, este será um legado que a agenda do centenário pretende não esquecer ao fazer uma radiografia completa de uma vida e de uma obra que surpreendeu os leitores pela inovação.
Citações e Pensamentos de José Saramago - Antologia de grandes frases do único escritor de língua portuguesa vencedor do Prémio Nobel de Literatura, é organizado por Paulo Neves da Silva, conhecido por ter criado o site Citador, além de ter publicado duas dezenas de livros. A recolha junta 640 citações de José Saramago, divididas em 280 temáticas, além de 20 textos breves.
A primeira citação encontra em A Caverna o texto original e refere o "acaso", a última é "vontade" e deriva de um trio de frases que fazem parte dos livros Manual de Pintura e Caligrafia, Memorial do Convento e O Homem Duplicado. Pelo meio surgem, entre muitos outros, temas como "bem", "crença", "divagação", "esperança", "globalização", "Loucura" ou "segredo", respetivamente de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Terra do Pecado, A Viagem do Elefante, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Último Caderno de Lanzarote, História do Cerco de Lisboa e de A Jangada de Pedra.
Citaçãocitacao"A quantidade de frases marcantes, e até de aforismos, presentes nos livros de Saramago são uma porta de entrada para obra do escritor"
Tendo em conta "a quantidade de frases marcantes, e até de aforismos, presentes nos livros de Saramago" esta compilação pretende ser "uma porta de entrada para a obra do escritor". Ao mesmo tempo, deseja registar os onze anos sobre a morte do escritor que publicou o seu primeiro livro em 1947, e teve um longo percurso em várias áreas, como o da edição, da tradução, da crítica literária, do jornalismo, da poesia e da dramaturgia, além da do romance, que o fez ganhar o Nobel da Literatura em 1998.
José Saramago Nas Suas Palavras é o segundo volume de recolha de pensamentos e de textos do escritor, uma investigação de Fernando Gómez Aguilera. A primeira edição data de 2010, e reunia um número infindável de frases com grande poder de intervenção e de ficção, que descreviam muito do pensamento e da capacidade de analisar a realidade nacional e mundial.
Para Aguilera, este é um "documento fundamental para melhor entender o homem e o escritor", tornando-se a profusão de citações um "contributo imprescindível para estudiosos e os leitores em geral" que desejam conhecer melhor o autor de uma obra. Estão principalmente presentes as respostas de entrevistas em órgãos de comunicação de todo o mundo, bem como de intervenções públicas realizadas um pouco por todo o planeta. Daí que Aguilera considere que "dificilmente se possa entender hoje de modo adequado a figura do escritor sem ter em consideração a sua faceta pública" que, na sua opinião, é a de um "ativista contínuo", apostado em "combater os desvios que perturbam a ordem do mundo e o bem-estar da humanidade".
Apesar de ainda faltarem dezassete meses para o centenário do nascimento de José Saramago, o tempo até lá, no dia e nos posteriores, será palco de uma intensa atividade em torno da obra, do homem e do cidadão. Um vasto programa que, segundo os responsáveis pela celebração da efeméride, deseja tornar-se uma "oportunidade para a consolidação de Saramago na história cultural e literária a nível mundial". Essa consolidação, referem, "envolve a revisitação de uma atividade literária e cívica marcante, a afirmação de uma obra com uma vitalidade que importa fortalecer, bem como a acentuação do pensamento social, político e ético de José Saramago e da sua atualidade".
Para Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, o programa do centenário "permitirá que nos recoloquemos diante de uma obra e de um modo de estar no mundo". Garante que a atualidade não ficará de fora: "Fá-lo-emos com a sensibilidade adquirida ao longo do tempo de pandemia, quando vimos a importância deste bem essencial que é a cultura. Sem ela, sem as distintas manifestações que incorporamos, leitura, música, teatro, séries de televisão, o tempo teria sido ainda mais sombrio e a nossa capacidade de resistência teria diminuído. É a partir desta premissa que celebramos os cem anos de vida do contemporâneo que José Saramago é".
Também o comissário para o centenário, Carlos Reis, considera que os vários eixos da programação irão mostrar o quanto Saramago "continua tão atual", com uma análise ao seu legado nas áreas da biografia, da leitura, das publicações e das reuniões académicas.
Tendo em conta que José Saramago é um "escritor do mundo" e com "presença expressiva em manifestações artísticas, educativas, políticas e sociais com vasta disseminação e efeitos variados", a celebração do centenário vai congregar entidades muito diversas, tanto em Portugal como noutras partes do mundo. Se a Fundação José Saramago terá um papel central, também à sua volta se reunirão muitas outras instituições, designadamente escolas, bibliotecas e associações culturais, bem como outras que realizarão exposições, mostras de cinema, de teatro, de ópera, de bailado e de artes plásticas. Além da republicação da obra de Saramago, vão concretizar-se muitas outras edições evocativas, publicações sobre a obra e reuniões académicas.
Entre os vários eventos já programados estão cinco conferências com personalidades de projeção internacional comissariadas por Alberto Manguel. Também a comparação dos universos da sua ficção com escritores da sua geração e seguintes, no âmbito da genealogia e da geografia saramaguiana, neste último caso com a descrição do roteiro literário e trajetos ficcionais e não ficcionais, tendo como base o livro Viagem a Portugal. O primeiro evento decorre a 16 de novembro e é centrado na presença de Saramago nos currículos escolares, contando com 100 escolas do ensino básico onde se fará a leitura em simultâneo de A Maior Flor do Mundo. Entre 16 e 18 do mesmo mês realiza-se o II Colóquio de Estudos Saramaguianos nas universidades Federal do Rio Grande do Norte e Federal Fluminense, enquanto a 9 e 10 de dezembro será a vez da VI Conferência Internacional José Saramago na Universidade de Vigo.
Para 2022, a multiplicação de atividades é grande: Colóquio internacional em Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian, o Curso de Verão pela Fundación Academia Europea e Iberoamericana de Yuste, os colóquios temáticos nas universidades de Belém do Pará e do Paraná, bem como nas de Massachusetts-Dartmouth e Princeton, e várias sessões nas cátedras de Vigo, Barcelona, Roma e Sófia. Também serão publicadas várias edições em livro e digitais, como a Fotobiografia por Ricardo Viel e Alejandro García, a Agenda da Imprensa Nacional, a exposição bibliográfica e documental na Biblioteca Nacional de Portugal e no Teatro Nacional de São Carlos, uma Mostra Documental na Torre do Tombo, além de exposições de artes visuais, projeções de filmes e dezenas de celebrações, entre as quais a cunhagem de uma moeda comemorativa do Centenário.
Paulo Neves da Silva
Editora Contraponto
216 páginas
Fernando Gómez Aguilera
Porto Editora
687 páginas
LEGENDA DA FOTO
DR/Fundação José Saramago
O centenário no nascimento José Saramago só acontece no próximo ano, mas são inúmeros os eventos que acontecem até ao fim da programação em todo o mundo
O título da obra de Garcez da Silva é Alves Redol e o Grupo Neo-Realista de Vila Franca e a epígrafe inicial reproduz uma frase do escritor: "... pudera surgir em Vila Franca um grupo coeso no seu inconformismo..." Está tudo dito, e as mais de duzentas páginas deste livro vão biografar Redol e fazer a história do neo-realismo naquela - e não só - localidade, de uma forma que cria o interesse perante um registo literário e uma forma de pensar o país e o mundo que entretanto desapareceu.
Como se escreve em anterior prefácio, o livro é um testemunho para a génese de um panorama cultural diferente daquele que era vivido no anterior regime e teve o condão de agregar personalidades que estavam em busca de um registo diferente do oficial e que espelhasse uma certa visão mais crua do que era a vida de então no seu total. Curiosamente, o cenário deste trabalho não dista assim tão da atualidade, ou seja, passaram apenas oito décadas sobre o momento em que o Grupo Neo-Realista se impôs e, como se refere no prefácio a esta edição, permitiu o aparecimento de uma "poeira de sonho que ficaria para sempre no imaginário de muitos". Um contexto de mudança que surgia por caminhos difíceis ou por via de "tudo o que se encontrasse disponível", como eram as leituras de obras de filosofia dialético-materialista e de doutrinação humanista, bem como dos romances que mostravam outra visão do mundo.
Este livro será, diz-se, uma espécie do romance que Alves Redol queria escrever sobre a época e para o que não teve tempo, mas mesmo fruto de investigação casa muito bem com uma narrativa empolgante.
Garcez da Silva
Editora Parsifal
231 páginas
O livro de J.G. Ballard é inesperado desde o seu início, mesmo se a visão dos personagens embarcados num navio que vai em busca da América pós-apocalipse se confrontem com os mesmos sonhos de encontrar fortuna naquele país como os que a colonizaram há séculos. Nesta ficção, o escritor bebeu todas as imagens de uma nação que quis impor ao mundo um novo modo de vida, exportando em todas as direções a maioria das distopias que marcaram o século XX, através dos filmes de Hollywood, dos automóveis sedutores, de marcas como a Coca-Cola. Se lido após a governação Trump, o paralelo é tenebroso, mesmo que o cenário criado para esta ficção seja o de um planeta virado às avessas pelas alterações climáticas. É certo que Ballard imaginou esta narrativa tendo muito em conta a entrada na cena política norte-americana na década de 1980 de um ator chamado Ronald Reagan, que evoca na introdução que é acrescentada a esta reedição: "Ideia bem menos fantasiosa do que poderá parecer ao princípio, se pensarmos que o ator era alguém com a cabeça cheia de tralha herdada dos filmes antigos, que sonhava com mísseis de lasers saídos do universo Star Wars".
A intenção de Ballard é construir uma "América alternativa", a que sobrevivera a décadas de abandono do país por habitantes escorraçados de um território que foi deixando de ser habitável e que é mostrada inicialmente, por exemplo, com uma Manhattan devastada e que mostra aos leitores uma visão que pouco tem a ver com o Made in USA tradicional, mas que o autor faz questão de reviver num percurso ficcional tão estranho como divertido.
J.G. Ballard
Editora Elsinore
254 páginas