Laura Alcoba: “A mãe matou os irmãos dela, mas é Flavia quem salva a mãe”
Paris, dezembro de 1984. Griselda acorda com uma dor de cabeça terrível e com a filha Flavia a insistir para a levar à escola. Levanta-se a custo e, de volta a casa, pinta-se em demasia. Tenta dizer ao marido, Claudio, que não está bem, mas ele despacha-a. Esmagada, Griselda faz o inominável: afoga os dois filhos mais novos na banheira e, encharcada e esborratada, vai buscar a mais velha, Flavia, de seis anos, às aulas. Só o “não” da professora a impede e muda de vez o rumo de uma história que Laura Alcoba, uma argentina exilada em França tal como o casal de Naquele Dia (que conheceu quando era criança), decidiu agora contar.
Catástrofe, tragédia, acidente. É difícil encontrar a palavra certa para exprimir o que Griselda fez naquele dia?
Do ponto de vista jurídico, não é difícil. Mas do ponto de vista humano, um tal ato é incompreensível. Estamos perante o inominável. Quando comecei a escrever sobre esta história, não sabia se o ia conseguir fazer, porque tinha medo dela. Porque é o indizível, é o impensável, por excelência. O que me convenceu que tinha de escrever este livro - não apenas que queria fazê-lo, mas que tinha de o fazer - foi o facto de Flavia ter sobrevivido a esta história. É uma história de resiliência, de uma menina que consegue sobreviver a esse dia de loucura. Um dia que, infelizmente, se assemelha a muitos dias de loucura. É o impensável, mas ao mesmo tempo, que se repete na história da humanidade. E acontece que, quando eu estava a escrever o livro, houve uma história quase semelhante que aconteceu em Bordéus, de uma mãe que, num momento de loucura, afogou os filhos, numa banheira.
A ideia de contar esta história surgiu quando estava no cinema e o filme lhe lembrou algo que tinha ouvido anos antes e enterrado na sua memória…
Sim, foi espoletada por uma história que tinha ouvido há muito tempo. Era um filme do Scorsese, Shutter Island. Foi uma sensação muito estranha. Eu trabalhei a minha memória de infância, mas tinha enterrado esta história. Era tão aterradora que a escondi. O meu pai, que tinha tido uma ligação a Griselda e Claudio anos antes, não teve qualquer contacto com eles a partir daí. Na altura, saí do cinema com uma amiga e disse-lhe que conhecia aquela história.
Estamos a falar de que ano?
Foi em 2010. Foi muito tempo antes de escrever o livro. E escrevi outros entretanto. Saí portanto do cinema a pensar que já conhecia aquela história. Lembro-me de ter dito ao meu editor na Gallimard que havia uma história aterradora no seio da comunidade de exilados argentinos em França e que se tivesse coragem, talvez um dia a escrevesse.
O que é que ele disse?
Disse que sim. Mas não escrevi logo. E quando dei o primeiro passo para contactar Flavia, foi muito perturbador porque tive a impressão de que ela estava à minha espera.
A Laura deu o primeiro passo?
Estava hesitante... E perguntei ao meu pai se tinha maneira de conseguir o contacto. Elas descobriram e deixaram-me uma mensagem no telemóvel.
As duas?
A mãe. Eu não estava pronta. E de repente ali estavam elas. Quando tive o meu primeiro encontro com Flavia, foi ela que me disse, ‘sabes o que é que a minha mãe fez?’ Eu disse que sim. E ela contou-me as memórias que tinha desse dia, que é o ponto de partida do livro. E disse-me que seria bom se eu escrevesse o livro. Foi quase um pacto entre ela e eu. Nunca esperei ver a mulher que vi. Ela é uma mulher luminosa. Uma fotógrafa. Uma pessoa muito realizada e bonita. E eu não estava nada à espera disso. Estava à espera de ver alguém torturado, complicado, que não está bem. Foi perturbador. Tal como foram perturbadoras as memórias que ela me deu no primeiro dia, que foram como flashes.
Os quatro momentos do dia?
As quatro recordações, sim. Tive a impressão de que estava a olhar para uma mulher de 40 anos mas que à minha frente tinha uma menina. Ela estava quase a dar-me o seu subconsciente em estado bruto. A partir daí, foi tudo muito rápido. Quando saí do café, tive a certeza de que tinha de fazer este livro. Não apenas que podia, mas que tinha de o fazer. Depois houve o encontro com Griselda, que também foi muito poderoso. Ela contou-me a sua história. Eu não sabia que perguntas fazer. Mas nem precisei de fazer perguntas. Apenas falámos e falámos. Combinámos encontrar-nos no mesmo café onde estivera com Flavia. Quase fomos expulsas porque estávamos ali há horas. Mas o que é realmente importante para mim no livro é Flavia. Sim, é um livro que fala do horror, do terror, do abismo desse ato. É sobre uma mulher que se quebra, que se perde. E, ao mesmo tempo, uma menina que consegue construir-se, que consegue sobreviver aos dias de loucura da mãe. Há uma série de histórias que acabam na escuridão total. Aqui temos uma família que sobrevive, porque Flavia sobrevive, porque Colette está lá, porque Colette diz “não”. Naquele dia, que é uma espécie de espiral de horror, alguém vê uma mulher que não está no seu perfeito juízo, que vem buscar a filha e recusa dar-lha. E a partir daí, com este gesto, tudo muda. Griselda acaba num hospital psiquiátrico. Mas é este gesto que permite que a história seja outra. Depois da escuridão, vem a luz. Ouvi-los, ouvir Flavia, ouvir Colette - que acho que é uma das pessoas mais bonitas que já conheci na minha vida.
Uma questão que surge ao ler o seu livro é: há uma parte de ficção em tudo o que ali relata?
Quando trabalho em coisas pessoais, trabalho a partir das memórias dos outros e tento encontrar algo universal. Para mim, esta história era uma história de violência, uma tragédia quase escrita de antemão. As tentativas de suicídio de Griselda, o facto de ter levado um tiro na cabeça e a bala ter lá ficado, tudo isso é autêntico, está nos jornais da época. Mas é verdade que houve uma série de elementos que eu tentei juntar. Um dos momentos mais fortes para mim foi o dia em que estive com [a professora] Colette e [o marido dela] René, que me contaram o papel que tinham desempenhado, me falaram sobre Flavia, sobre esta menina que foi mantida no escuro - os adultos não lhe podiam falar desse dia.
Apesar de ela perceber tudo...
O mais importante para mim foi o facto de eu estar convencida há muito que não se pode esconder nada às crianças, que as crianças sabem sempre. Para mim, Flavia é o coração do livro - a força da infância, a resiliência, a forma como não se pode esconder nada das crianças. Certas histórias trágicas, histórias extremas, dizem algo sobre a loucura, a morte mas também o amor. E para mim tem sido uma provação e, ao mesmo tempo, um grande alívio escrever este livro. Digo a mim própria: a Flavia existe, é possível ser a Flavia depois de uma história como esta. Para mim é uma história de resiliência com letra maiúscula. Era isso que eu queria, o que retirei desta história. É verdade que me contaram coisas que não estão no livro. Mas eu trabalho sempre a partir de um quadro... Fiz questão de mudar as suas identidades, para que não fossem reconhecíveis, mudei um pouco as localizações em Paris. Eles reconstruíram as suas vidas, não se tratava de destruir o que tinham reconstruído. Fiz muito para proteger a identidade destas pessoas, porque elas depositaram muita confiança em mim.
Quando se chega ao fim do livro, há duas coisas que podem surpreender: os sentimentos contraditórios que ficam em relação a Griselda e o facto de ser mais uma história de perdão do que de acusação.
O ato continua a ser insuportável.
Estava a falar da aceitação por parte da filha, do marido, que continuam a viver com Griselda depois de tudo o que ela fez… Quando geralmente as famílias envolvidas neste tipo de crime separam-se…
É um abismo, mas o abismo faz parte do ser humano. Não há monstros. Há humanos que saem dos carris, que atravessam uma linha que não deve ser ultrapassada. Griselda está destroçada. Ela falou-me dos abusos que sofreu em criança. Ela própria diz: “Estou a contar-te isto para que saibas quem sou, mas não pretendo justificar o que fiz”. Ela não se consegue perdoar a si própria. Já me perguntaram se Flavia e Griselda leram o livro antes de ser publicado. Claro. Lembro-me que Griselda teve uma reação incrível. Disse-me: “O horror do teu livro sou eu, é normal.” Porque é assim que ela se vê. Mas também disse: “Obrigada por veres a beleza da Flavia.” Isso diz muito sobre a reação dela. Penso que foi porque Flavia estava lá que ela conseguiu reconstruir a sua vida. Por estranho que pareça, tenho de admitir que, se me tivessem contado esta história, uma mãe que comete infanticídio acaba por cumprir uma pena de prisão muito curta. Nove meses, a duração de uma gravidez.
O que é perturbador também, a Laura sublinha-o no livro…
Nove meses é incrível. E há a aposta da advogada de dizer que esta mulher é um caso psiquiátrico, que vai receber ajuda e vai reconstruir-se como mãe. É uma aposta louca. Não sei se teria concordado quando a sentença foi proferida. Mas o que posso dizer hoje é que ela tinha razão. Griselda continua frágil, é óbvio. A Flavia, ambas estão a aguentar-se. Não creio que Griselda se tenha tentado suicidar depois.
Mas já tinha tentado antes. Sabemos que ela sofreu abusos sexuais em criança, que tinha uma relação muito difícil com a mãe - La MADRE, como é referida no livro. As várias tentativas de suicídio… Isso foi ultrapassado depois daquele dia?
Por fim, ela deixa de querer a morte. Porque a certa altura ela sente-se responsável por Flavia. É em torno desta ligação que ela emerge. E é incrível. Portanto, também é um livro estranhamente sobre o amor, além de ser sobre um crime insuportável. Há um depois possível. Isso é o que é importante. O que me interessou foi como era possível sobreviver a isso. Não estou a dizer que respondi à pergunta. Tentei recolher o que me deram em termos de histórias. Acredito que existe uma força incrível na infância. Flavia é a criança que sobrevive e mantém tudo unido desde o momento em que é salva por Colette. A fada boa da história é Colette. Há muitos elementos no livro que eu queria tratar com referências aos contos infantis. La MADRE, com tudo o que representa, é um pouco a madrasta. Essa mãe que a rejeita e que faz com que Griselda não seja verdadeiramente mãe senão depois desse ato a que ela chega. Griselda continua a ser alguém que carrega dentro de si o horror da sua ação. Para sempre. Não se trata de dizer que está tudo bem. Não podemos dizer que está tudo bem.
Griselda ainda carrega esse fardo. E Flavia?
Absolutamente. Ela escolheu não ser mãe. Para ela, a maternidade é algo complicado de imaginar. Mas Flavia é uma pessoa que trabalha com a luz. É uma fotógrafa de uma generosidade incrível que acompanha as situações humanas no mundo, que trabalha muito para ONG. Flavia é possível depois de uma história destas. E esse é o milagre. Ela é o milagre.
Naquele Dia tem pontos comuns com outros romances seus. Esta experiência da comunidade argentina em França é importante na sua escrita?
Sim, mas passa-se em França com uma família argentina, mas podia passar-se em qualquer lugar. O que acho extraordinário é que numa história de violência como esta surge uma criança que carrega uma força louca. E esse é um dos temas a que volto frequentemente na minha escrita, que é a resiliência da infância. Temos a Argentina, os exilados, que estão lá, claro, mas é uma história universal. E o que me fascinou nesta história foi a lucidez da criança, de quem nada se pode esconder, a criança que entendeu tudo, e que consegue superar tal história e finalmente salvar os adultos. Porque, em última análise, é Flavia quem salva a mãe. A mãe matou os irmãos dela e é ela quem torna possível a sobrevivência psicológica da mãe. A luz vem de Flavia, auxiliada pela Colette. Das profundezas do abismo, surge um pouco de luz.
Este livro foi publicado em França em 2022. Quais são os seus próximos projetos?
Há um livro que será publicado no próximo ano pela Gallimard, talvez em fevereiro. E é também uma investigação. É sobre um filme desaparecido, que foi destruído pelos produtores em 1936. É uma história verdadeira. Vou no encalce desta destruição, mas contada a partir dos dias de hoje.