À saída do Teatro da República, num domingo de 1913.
À saída do Teatro da República, num domingo de 1913.

“A imagem que temos do Pessoa é incompleta. Não estamos preparados para saber quem ele é”

Vamos pelas imagens em movimento inéditas de Fernando Pessoa, e descobrimos um sentimento novo perante um arquivo que guarda as primeiras reações humanas a uma câmara de filmar. 'Onde Está o Pessoa?' é um prazer detetivesco – a realizadora, Leonor Areal, falou ao DN sobre a sua investigação e descoberta. Nos cinemas.
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Um homem sorri, outro afina o bigode, há uma pluma que passa por entre a multidão, presa ao chapéu de uma senhora, e é ainda digno de registo quem se esconde da câmara e quem a procura, os que falam e os que gesticulam para ela, como se estivessem a sentir-se vigiados ou simplesmente excitados com a presença do objeto estranho. Tudo isto se vê no filme Onde Está o Pessoa?, em rigor, um ensaio audiovisual que nos transforma em detetives amadores à procura de Fernando Pessoa no meio da multidão que sai de um concerto sinfónico no Teatro da República, em Lisboa, numa tarde de domingo de 1913. As imagens, de autoria desconhecida, lembram as da “saída da fábrica” dos irmãos Lumière, com os corpos em movimento diante do cinematógrafo, neste caso, a interagirem com ele, a mostrarem o fascínio perante a novidade, alguns desconfiando da máquina... Mas não nos desviemos do essencial: que chapéu e bigode podem referenciar Pessoa? 

A realizadora e investigadora Leonor Areal vai-nos orientando através da voz em offora pausando no fotograma ora recuando nesse segmento de arquivo, como quem se deixa desviar ludicamente do foco da sua pesquisa, atraída por outros rostos conhecidos, sejam os dos pintores Amadeo de Souza-Cardoso e Eduardo Viana, seja o de um jovem António Ferro. São 60 minutos de puro deleite, com um instante privilegiado em que Pessoa se oferece ao olho da lente, durante nada mais, nada menos que nove segundos. Pode dizer-se que é Pessoa “como nunca o vimos”. Mas mais do que isso, somos devolvidos à condição da curiosidade primordial que envolveu a invenção dos Lumière. Numa palavra: delicioso. 

O que é que está na origem deste filme? A Leonor foi à procura do Pessoa ou encontrou-o por acaso? 

Fui à procura dele. Mesmo sem grande esperança de o encontrar... Entre os muitos filmes que existem na Cinemateca digital, havia este que é a saída da assistência do Teatro da República, no fim de um concerto. E eu sabia, pelos diários do Fernando Pessoa, que ele frequentava esses concertos. Portanto, quando pus os olhos nestas imagens foi logo com o intuito de o ver algures, apesar da baixa resolução. Acontece que era muito difícil encontrá-lo, porque todos os homens aqui têm chapéu, quase todos têm bigode, saem muitos ao mesmo tempo, etc. Então guardei essa tarefa para uma altura em que tivesse tempo, e quando me dediquei realmente a procurar o Pessoa já tinha como ponto de partida a pergunta “onde está o Pessoa?”, sem que fosse obrigatório encontrá-lo: seria um ensaio paradoxal, digamos, sobre isto de ir à procura do Pessoa entre muitos chapéus e bigodes, que são hoje um ícone desta figura. Mas a certa altura encontrei-o! E isso foi extraordinário: ele estava mesmo lá! 

"Também lhe chamo filme-mistério, porque tanto eu como os espectadores andamos atrás da mesma coisa, sendo que cada espectador olhará para sítios diferentes; não vemos todos o mesmo", garante a realizadora Leonor Areal.

Portanto, o filme acaba por ser uma representação do próprio ato de investigar... 

Essa era a intenção. Ou seja, independentemente de o encontrar, seria um filme que reproduziria a minha busca, a minha inquirição. No fundo, o filme é uma ciência aplicada, é a reprodução dos meus passos de investigação pela ordem em que eles aconteceram – obviamente, suprimindo-se alguns desses passos, porque foi quase um ano de pesquisa sobre as imagens. Mas é uma reprodução no sentido em que enuncia as minhas dúvidas, as minhas hipóteses, os meus erros, e o espectador vai acompanhando o meu percurso, ele próprio formulando as suas hipóteses. De certo modo, também ele faz a sua procura. E pelo caminho vão-se sucedendo várias surpresas, isto é, encontrei muitas outras personalidades, umas mais notáveis, outras mais anónimas e esquecidas pelo tempo. 

À saída do Teatro da República, num domingo de 1913.

Mas, para além do reflexo de um trabalho moroso, há também aqui uma dimensão dupla de filme de suspense e pesquisa lúdica, à semelhança dos livros Onde Está o Wally? 

Sim, é verdade. É isso. E acho que funciona. As pessoas acabam por divertir-se. Eu também lhe chamo filme-mistério, porque tanto eu como os espectadores andamos atrás da mesma coisa, sendo que cada espectador olhará para sítios diferentes; não vemos todos o mesmo. Por outro lado, esse jogo é um desafio que começa logo no material de divulgação do filme – o cartaz e o trailer –, que já tem lá o Pessoa à vista, para quem quiser procurá-lo... E o que noto é que muita gente tem dificuldade em dar com ele. Porquê? Porque a imagem que temos do Pessoa é muito depurada, não só pela iconografia que foi sendo criada, mas também pelo facto de existirem poucas fotografias – ao que parece, ele não gostava de tirar retratos. Então, a imagem que temos do Pessoa é incompleta: vamos atrás dos traços que o marcam, da gestalt [forma], e não estamos preparados para saber quem ele é. 

Falou aí em jogo e na questão do olhar, o que me remete para o olhar daqueles homens diretamente para a câmara, e o nosso olhar sobre eles. Parece-me um jogo, uma dinâmica, ou melhor, uma tensão de olhares muito interessante. 

Exatamente. E isso é uma coisa rara de se ver em cinema. Até porque hoje as pessoas não têm a mesma inocência que tinham naquela altura, em relação à câmara, e não a olham de frente, tal como aqui vemos. Nesse sentido, é como se nós os olhássemos na frontalidade, mesmo que eles não nos estejam a ver. Somos convidados a interpretá-los, nos seus olhares e gestos, e penso que é também isso que nos agarra ao ecrã. É como se estivéssemos em contacto direto com aquelas pessoas. 

Há também um importante retrato sociológico nestas imagens. Mal se veem mulheres entre os chapéus masculinos – enfim, lá se encontra um ou outro adereço feminino na multidão –, quase como se a vida cultural fosse um “desporto masculino”... 

Foi um aspeto muito notório para mim, ao princípio, sem dúvida. Mas apesar de tudo elas estão lá. Em bastante menor número, mas estão lá; aos poucos, fui-me apercebendo disso. Passam muito discretamente, talvez porque assim se deveriam comportar, mas enfim, não avancei na análise sociológica... Se o fizesse, no entanto, acredito que iria de novo ter algumas surpresas, como aconteceu já depois de o filme estar feito. É o caso da Florbela Espanca, que não identifiquei no momento (mas ficam a saber que está lá), e da Judith Teixeira, que descobri recentemente por ali, uma figura não menos importante, poetisa sáfica, que fez parte de um escândalo mais tarde, em 1923, sobre a “imoralidade” da arte, envolvendo também os livros do António Botto e do Raul Leal, na sequência da publicação de Decadência, a coletânea de poesia dela... Portanto, era uma poetisa escandalosa, à época, e uma das personalidades femininas que estão no filme, mesmo que eu não tenha identificado em tempo útil. 

Outro aspeto curioso são os gestos demasiado “contemporâneos” de alguns dos homens, dirigidos para a câmara, desde logo aquele que mostra o dedo do meio... E acho que, se tive esta perceção, é porque há uma ideia romantizada do passado em relação aos modos e costumes próprios de cada época. Concorda que essa ideia se desmonta um pouco perante estes gestos tão contrários à decência? 

É bem verdade! (risos) No fundo, nós construímos uma imagem do passado – o passado que não vivemos – pouco correspondente ao que terá sido de facto... Imaginamos uma sociedade ainda vitoriana, muito restrita, e, no entanto, é preciso lembrar que em 1913 estávamos sob o efeito da revolução republicana [5 de Outubro de 1910], num período de quebra de regras, de tabus, de liberdade de expressão e costumes – por exemplo, passou a ser permitido o divórcio, surgiram as sufragistas, as lutas de consciência negra... –, tudo isto ficando um pouco enterrado com os mais de 40 anos de ditadura, depois. Mas foi uma época de grande libertação. Se pensarmos nisso, pela via da tal leitura sociológica a que não me dediquei, acabamos por perceber que a gestualidade obscena é uma coisa antiga! Mas é impossível não se ficar surpreendido com aqueles comportamentos, que têm também um lado acriançado, claro, muito por reação à novidade do cinematógrafo. 

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