Perante o enésimo filme sobre os Beatles, pode dizer-se que a fonte de energia do seu legado é inesgotável. Se já vimos isto antes? Bem, pensando na semelhança de quase todas as imagens de bastidores que até hoje nos deram acesso ao contagiante clima galhofeiro da banda mais famosa do planeta, sim. Mas esta não é uma constatação enfastiada: a cada nova entrada no universo dos Fab Four, ou, muito concretamente, em Beatles ‘64, a mais recente abordagem da beatlemania, sente-se que há sempre uma leitura histórica passível de se aprofundar, um apuramento humano a ser feito em torno de um fenómeno fixado na linha da eternidade como nenhum outro. É conferir, a partir de hoje, no Disney+..Realizado por David Tedeschi, colaborador/montador regular das produções documentais de Martin Scorsese (com quem assinou Uma Discussão com 50 Anos, sobre a New York Review of Books, e Personality Crisis: One Night Only, sobre o cantor David Johansen), Beatles ‘64 não é apenas um novo mergulho em filmagens de bastidores, mas uma reflexão viva, sustentada e entusiástica sobre o capítulo da primeira visita dos Beatles aos Estados Unidos, pouco mais de dois meses depois do assassinato do presidente John F. Kennedy. No papel de produtor, Scorsese dá uma ajudinha aparecendo em momentos de conversa informal com Ringo Starr, enquanto Paul McCartney, o outro Beatle vivo, faz comentários à parte..Com o foco nessas duas semanas de fevereiro de 1964 em que Ringo, Paul, John Lennon e George Harrison estiveram em Nova Iorque para atuar no The Ed Sullivan Show, seguindo para Washington D.C., onde deram um concerto no Washington Coliseum, antes do regresso a NY, onde quebraram todas as barreiras conceptuais com uma performance no Carnegie Hall, passando ainda por Miami, Tedeschi baseou-se, por princípio de trabalho, no material de “cinema vérité” dos irmãos David e Albert Maysles, que dera origem ao documentário What’s Happening! The Beatles in the U.S.A. (1964). O que não significa que se tenha ficado por aí..Da mesma maneira que inclui imagens da autoria dos Maysles que não tinham entrado nesse filme original, Beatles ‘64 cruza o arquivo imaculadamente restaurado (pela WingNut Films de Peter Jackson) com várias entrevistas feitas agora, e até excertos de outras com Lennon e Harrison, que abrem o discurso sobre o registo fascinante dos Maysles, qual testemunho singular da intensidade bruta daqueles dias, ou feitiço histérico de que não se consegue guardar distância... .Memórias gritantes.Na diversidade de entrevistados há figuras como Jamie Bernstein (filha do maestro Leonard Bernstein), que treme só de se lembrar da noite em que levou de arrasto a televisão para a sala de jantar para ver The Ed Sullivan Show; o escritor Joe Queenan, que fala do efeito “luz no escuro” produzido pela música dos Beatles naquele tempo; e David Lynch, que na sua deliciosa expressão lunática, ao descrever as memórias enquanto jovem que assistiu ao concerto no Washington Coliseum, se lança neste maravilhoso devaneio: “A música é uma das coisas mais fantásticas. É quase como fogo, água e ar... é uma cena! Faz algo pelo intelecto, faz algo pelas emoções, e alguns tipos de música conseguem fazer o coração crescer quase até rebentar - lágrimas de felicidade correm-te pelo rosto, não consegues acreditar na beleza que te chega”. Assim se sentiam, muito provavelmente, as jovens filmadas pelos irmãos Maysles, que corriam e gritavam nas ruas como que tomadas por um primitivismo inclassificável..Beatles ‘64 gira sobretudo em torno dessa indizível alegria coletiva, que não se pode dissociar do específico contexto americano. Entenda-se: num país que fazia o luto de uma das suas mais elevadas promessas, Kennedy, a música dos Beatles apareceu como a via direta para a regeneração espiritual. Um curativo eletrizante, uma linguagem cósmica das emoções, consubstanciada naquelas quatro cabeças de franja que outra coisa não ofereciam senão palavras e rock & roll. .“Na banda, nós éramos normais, o resto do mundo é que estava maluco”, ouve-se George Harrison afirmar numa entrevista antiga. Mas a histeria das adolescentes que aqui se vê não é uma reação meramente descartável. É algo a pedir um estudo científico: uma reação física à modernidade sonora e visual, ou não fossem os Beatles um modelo masculino distinto, como nota a feminista Betty Friedan, a tocar e cantar música “moralmente corruptiva”, como lhe chamavam os pais preocupados, segundo conta Leonard Bernstein na sua belíssima aula em defesa da originalidade dos malandros que nos deram She Loves you... Yeah, Yeah, Yeah.