Chega hoje às salas um novo filme chinês, um fragmento mais de um país ao mesmo tempo fascinante e desconhecido - isto, claro, se quisermos dispensar a descrição novelesca da China (e, em boa verdade, da maior parte dos países a que se associe o adjetivo “exótico”) que o pitoresco televisivo vai reproduzindo com preguiçosa regularidade. Aí está o belíssimo A Torre sem Sombra, escrito e realizado por Zhang Lu, revelado no Festival de Berlim de 2023.Face às enigmáticas singularidades do filme e, sobretudo, à atenção nele dedicada a personagens “sem história” (ou à procura da sua própria história), vale a pena citar uma observação da sinologista francesa Anne Cheng, professora do Collège de France, no texto de apresentação de Penser en Chine (ed. Gallimard, Paris, 2021), um interessantíssimo volume sobre a China no século XXI e, em particular, sobre o ressurgimento intelectual e político de uma “memória imperial” apostada, sobretudo, em demarcar-se da “ideologia capitalista”. Escreve ela: “Ao mesmo tempo que as livrarias apresentam secções ‘históricas’ abundantes, a censura, a amnésia deliberada e a memória seletiva espalham-se com mais severidade do que nunca.”O que, entenda-se, não significa que A Torre sem Sombra seja um panfleto maniqueísta colado a qualquer sensacionalismo que favoreça uma visão “social” em que se trata apenas de distinguir as “boas” e as “más” personagens. Desde logo, porque as aventuras e desventuras de Gu Wentong (Xin Baiqing), um crítico gastronómico divorciado, pai de uma menina que está a cargo da sua irmã, estão longe de funcionar como uma narrativa demonstrativa, ainda menos moralista. Em boa verdade, através dos seus delicados particularismos, A Torre sem Sombra é um filme de profundo amor pela China - é essa, afinal, a sua fundamental dimensão política.Será inevitável referir o simbolismo evocado pelo título escolhido por Zhang Lu. A Torre que surge nos cenários das deambulações de Gu Wentong, ou nos seus encontros com a companheira Ouyang Wenhui (Huang Yao), pertence a um templo budista do século XIII, situado no Distrito de Xicheng, em Pequim - a sua forma pontiaguda, com um cone assente sobre um cilindro, gera o efeito bizarro de não ser fácil observar onde e como se projeta a sua sombra… O que arrasta uma metáfora possível: talvez que as personagens, sobretudo Gu Wentong, existam nessa incerteza de não se projetarem sobre o chão que pisam ou, então, não terem qualquer efeito sensível sobre aqueles com quem se cruzam ou dialogam. .Uma vontade realista.Zhang Lu consegue a proeza, hoje em dia rara (no cinema chinês ou fora dele), de nos sugerir as pontas soltas de um tecido social de frágil fragmentação afetiva - observe-se a metódica evolução da relação de Gu Wentong com o pai -, de tal modo que as ações das personagens e os lugares da narrativa se revelam assombrados pelo mesmo desencanto. Como se cada ser humano fosse a emanação de um coletivo social que, apesar do rigor da sua organização, não acolhe as diferenças individuais.Há, talvez, uma palavra oportuna para descrever a lógica e os fundamentos de tudo isto: realismo. Na certeza de que a caracterização mediática dos seres humanos como meras emanações de algum “coletivo” (social, político, de género, etc.) é, precisamente, o oposto de qualquer vontade realista de compreender o mundo à nossa volta. Em A Torre sem Sombra, cada um tenta lidar com o mistério do tempo que habita. Podemos mesmo baralhar as referências históricas e retomar a expressão de um clássico de 1967 assinado pelo italiano Marco Bellocchio: “A China está próxima”.