2001: odisseia na estrada
Se há poucas semanas um filme (A Lei de Teerão) de um jovem cineasta (Saeed Roustayi) estreado nas nossas salas dava conta da vitalidade do cinema iraniano, através do seu sangue novo, Estrada Fora não só o confirma como mostra que uma linhagem nobre não se perde, mas renova-se.
Primeira obra de Panah Panahi, filho de um dos cineastas de referência do Irão, Jafar Panahi (à data deste texto, a cumprir seis anos de prisão com uma sentença de 2010 que o condenava por "propaganda contra o regime"), Hit the Road é um objeto perfeitamente encaixável na herança do pai, e de Abbas Kiarostami, mas com um rasgo pop que desestabiliza as ideias feitas sobre isto de se ler a expressão de um realizador debutante à luz da mais honrosa tradição cinematográfica de um país.
Com efeito, e tal como os seus mestres, o que Panahi filho traz ao panorama não se acomoda numa categoria imediatamente reconhecível. Road movie? Comédia? Drama? O filme vai trocando as voltas ao esquema com tanta espirituosidade e melancolia que a certa altura já não sabemos a quantas andamos em termos de barómetro emocional (o que, entenda-se, é muito bom). Quatro personagens, uma família, dentro de um carro de aluguer é a informação que basta para seguir viagem. A mãe parece preocupada demais para quem está a desfrutar de um passeio (isto não são férias), o filho mais velho, no lugar do condutor, mantém-se quase sempre em silêncio, o pai, no banco de trás, aguenta o desconforto de uma perna engessada, e o filho mais novo, um fedelho irresistível de seis anos que tem resposta para tudo, é aquele que os adultos tentam proteger do motivo da viagem. Ah, e não esqueçamos a cadela, Jessy (única personagem com nome), o animal doente que volta e meia anda ao colo, como um bebé, tornando-se um apontamento comovente sobre o sentido enigmático desta contagem de quilómetros. Digamos que na imagem constante do colo cabe todo o amor que Estrada Fora reflete pelo caminho.
Parte do fascínio do filme tem que ver com esse mistério da situação. Não sabemos para onde segue o clã, mas vamos percebendo que há uma tristeza encoberta, uma despedida iminente, cujas emoções desarrumadas são indissociáveis de uma leitura política: através desta família espreita-se a mágoa do Irão. E convém não dizer mais nada.
Das várias cenas que apetece evocar de um filme repleto de momentos citáveis, talvez possamos escolher a conjugação de dois: aquele em que a mãe pergunta ao seu mais velho qual é "o melhor filme do mundo" - ele responde, sem grandes hesitações, 2001: Odisseia no Espaço, com uma teoria sobre o poder calmante dessa obra de Kubrick - e outro mais à frente em que o pai, dentro de um saco-cama prateado, com o filho pequeno deitado de costas em cima dele, ambos a olhar para o céu noturno, conversam sobre o Batman, enquanto os seus corpos sobrepostos vão formando, à medida que a câmara recua num travelling suave, a figura de um astronauta perdido no espaço. É essa solidão, essa perda simbólica do cordão umbilical, que Hit the Road resume com uma referência cinéfila e um gesto mágico. Que surpresa tão bonita, este começo de estrada.
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