Rogério Charraz, José Filaho Gouveia e Joana Alegre.
Rogério Charraz, José Filaho Gouveia e Joana Alegre.D.R.

Anónimos de Abril: Um projeto que procura figuras "ainda mais anónimas"

As histórias dos que resistiram à ditadura mas que ninguém conhece começaram por ser cantadas em concerto e foram agora editadas num livro-disco, que terá um segundo volume.
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No ano passado os Anónimos de Abril percorreram o país em concerto para dar a conhecer pelas canções pessoas que lutaram pela liberdade em Portugal, mas que não estão nos livros de História. Agora, o projeto passou dos palcos para um livro-disco que conta 12 dessas vidas. É apenas o primeiro volume porque, diz ao DN José Fialho Gouveia, o autor das letras das canções e da maioria dos textos do livro, "com a visibilidade que o projeto ganhou e com os concertos, há muita gente que tem vindo ter connosco para partilhar histórias de familiares e de conhecidos. É algo que nos deixa muito felizes e muito entusiasmados, porque são figuras ainda mais anónimas e, para nós, é um privilégio poder dar este contributo para a nossa memória coletiva".

O livro começa com a história de Celeste Caeiro, a senhora a quem se deve o símbolo do cravo, que morreu em novembro do ano passado, aos 91 anos - mas que assistiu ao primeiro concerto dos Anónimos de Abril, em janeiro de 2024 -, e que serviu de inspiração para este projeto idealizado por José Fialho Gouveia e pelo músico Rogério Charraz, ao qual se juntaram as vozes de Joana Alegre e João Afonso, e as ilustrações de Marta Nunes.

São oito capítulos com as histórias de Celeste Caeiro, Aurora Rodrigues, Padre Alberto Neto, Herculana e Luiz Carvalho, Albina Fernandes, Branca Carvalho, os quatro mortos de Abril (Fernando Giesteira, José Barneto, João Arruda, Fernando dos Reis) e Francisco de Sousa Mendes. Os textos são de José Fialho Gouveia, com exceção de dois, um escrito na primeira pessoa por Aurora Rodrigues, e outro pelo jornalista Miguel Carvalho sobre a tia, Branca Carvalho. No final de cada texto está a letra da canção e um QR Code que remete para a música.

Nos concertos que realizaram em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril, passaram, mais canções do que aquelas que estão no livro. Por isso, o letrista e o músico prometem um segundo volume, não só com as músicas já feitas e que ficaram de fora, mas também com novas histórias. "No espetáculo temos 14 canções e um poema, que contam a história de 19 figuras pouco ou nada conhecidas da maioria dos portugueses. Neste momento já estamos a trabalhar em mais algumas histórias que nos foram chegando nos 19 espetáculos que demos no ano passado. Assim que conseguirmos traduzi-las em canções, passarão a fazer parte do espetáculo e mais tarde do volume II", diz Rogério Charraz.

No arranque deste projeto a única certeza dos dois autores é que dariam música à história de Celeste Caeiro e dos quatro homens que morreram na Revolução: "A partir daí foi um trabalho de pesquisa em várias fontes de informação, como a internet, livros, jornais de época... Houve também uma pessoa que nos deu uma ajuda inestimável, a Rita Rato, diretora do Museu do Aljube. Deu-nos a conhecer várias figuras e apontou-nos muitos caminhos. Entretanto, com a visibilidade que o projeto ganhou e com os concertos, há muita gente que tem vindo ter connosco para partilhar histórias de familiares e de conhecidos".

Nas próximas semanas quem quiser contribuir para este projeto terá também uma página na internet, que está em construção."Esperamos que seja mais uma ponte de contacto com os anónimos que lutaram pela liberdade, sendo que, tal como aconteceu nos últimos meses, as pessoas podem contactar-nos por email, pelas redes sociais ou no final dos espetáculos, porque temos muito interesse em receber as suas histórias e as dos seus familiares", frisa José Fialho Gouveia.

A escolha dos nomes que se transformarão em música e em texto de livro depende, essencialmente, de um fator: "Diria que o principal critério é a capacidade da história nos emocionar. Foi o que aconteceu com as que retratámos no ano passado e tem sido o principal ingrediente do projeto, que tem levado tanta a gente a ligar-se a ele. Depois queremos também continuar a valorizar o papel das mulheres na resistência, algo que nem sempre tem sido valorizado nos últimos 50 anos e procurar histórias cada vez mais anónimas", diz Rogério Charraz.

"Até agora também temos tido a preocupação de ter histórias variadas. Não queríamos ter apenas presos políticos ou figuras que lutaram na clandestinidade. Esse objetivo foi conseguido e este trabalho mostra que o combate à ditadura foi feito de muitas formas e também de pequenos-grandes gestos", acrescenta Fialho Gouveia.

A falta de financiamento foi a razão porque as 14 canções que passaram nos concertos não foram todas gravadas. "Só não gravamos todas porque falhámos por poucas décimas o apoio no concurso da DGArtes (Direção-Geral das Artes). Isso fez com que tivéssemos que fazer escolhas e gerir os recursos financeiros que tínhamos disponíveis", explica o letrista.

O projeto candidatou-se ao concurso “Arte pela Democracia” da DGArtes, cujos resultados só foram divulgados em agosto. "Na verdade, é preciso dizer que só temos estas oito histórias registadas em livro e canções porque o Zé Fialho trabalhou como um louco e fez um verdadeiro milagre", sublinha Rogério Charraz, que também questiona a atuação da entidade pública. "Esse programa que era suposto ter três edições (2023, 2024 e 2025) não abriu este ano, sem que tenha sido dada qualquer explicação pelo Ministério da Cultura ou pela DGArtes...".

Quanto aos concertos, são para continuar, mas este ano subir aos palcos está a ser mais desafiante. "Neste momento, temos concertos agendados para os dias 24, 25 e 26 de abril, em Alcanena, Marco de Canaveses e Esposende. Ao contrário do que aconteceu em 2024 – porque se celebravam os 50 anos da revolução –, infelizmente, neste ano, estamos a sentir que os programadores estão a pensar neste espetáculo apenas para o mês de abril. É uma pena que assim seja e não faz sentido. O projeto chama-se Anónimos de Abril, mas podia chamar-se Anónimos da Liberdade", diz José Fialho Gouveia.

"É um desafio que deixamos aos programadores deste país. A coragem desta gente não merece que os entrincheiremos em dois ou três dias do ano. Temos alguns contactos a decorrer e esperamos poder fazer muitos mais espetáculos ao longo do ano", adianta Rogério Charraz.

Parceria que começou num jantar

O Anónimos de Abril não é o primeiro projeto concebido em conjunto por José Fialho Gouveia e Rogério Charraz. A parceria iniciou-se quando José Fialho Gouveia forneceu letras para um disco do músico. "Começou num jantar de amigos comuns, onde lhe perguntei se tinha por lá letras que pudesse musicar. Quando me enviou a primeira remessa, acabei logo por gravar cinco no disco Não tenhas medo do escuro. Depois a cumplicidade foi-se intensificando", conta o músico.

"São aqueles instantes decisivos. Se um de nós tivesse faltado àquele jantar, se calhar nenhum destes projetos existiria", acrescenta Fialho Gouveia. É que a partir dessa primeira colaboração nasceram dois projetos concebidos pelos dois do princípio ao fim: O Coreto e Reunião de Condomínio.

"Como temos feito discos conceptuais, começamos pelo conceito, discutimos as ideias que queremos explorar e a partir daí o Zé começa a fazer as letras, que eu depois musico", descreve Rogério Charraz.

Em O Coreto, que nasceu do fascínio do músico pelos coretos e que contou com produção de Luísa Sobral e fotografias de Luís Filipe Catarino, o objetivo era mostrar as assimetrias entre os grandes centros urbanos e o interior desertificado do país. Em Reunião de Condomínio, os habitantes de um prédio são pretexto para abordar questões como a imigração, o assédio sexual ou a vida nómada dos professores. Este projeto conta com ilustrações de Samuel Úria.

No Anónimos de Abril também há ilustração, de Marta Nunes. "Há duas razões principais para isso. A primeira é o fascínio que ambos sentimos por essa arte de dizer muitas coisas num só desenho – acho que a maior frustração da minha vida é não saber desenhar. Outra é termos os dois muito pouca paciência para tirar fotografias... [risos]. Mas neste caso houve ainda uma outra razão determinante, talvez a maior de todas: o facto de sermos muito fãs do trabalho da Marta Nunes e de ela trabalhar muito à volta da temática da Liberdade", diz Rogério Charraz.

Ao Anónimo de Abril juntou-se também a voz de Joana Alegre e de João Afonso. "Foram dois nomes óbvios que nos surgiram quando começámos a pensar que este deveria ser um projeto coletivo. Não só pelo talento de ambos, mas também porque são dois cantores que, de várias formas, estão ligados a Abril. O João esteve connosco na estrada durante o ano passado e é convidado em dois temas do disco, mas, por necessidade de tornar o projeto mais portátil e também por motivos de agenda, agora em 2025 só vamos estar com a Joana", explicam.

José Fialho Gouveia trabalhou em jornais, mas o gosto pelas histórias é anterior a isso. "Ainda antes do jornalismo, ainda apenas como ouvinte de canções, sempre me senti mais agarrado às letras que de alguma forma contam uma história. Para mim, as duas maiores referências na escrita de canções são o João Monge e o Carlos Tê. As letras deles têm isso. Têm uma história lá dentro. Nem que seja um momento de uma história, uma espécie de fotografia, e nós podemos imaginar o resto".

Para Fialho Gouveia, este projeto mais recente, cujo livro-disco é lançado hoje, ao final da tarde, no Museu do Aljube, em Lisboa, tem um peso diferente dos dois anteriores. "Há uma enorme diferença entre as letras do Anónimos de Abril e todas as outras. As canções do Anónimos de Abril são inspiradas em pessoas de carne e osso, há ali uma história de vida que é preciso contar. Isso fez com que no processo de escrita sentisse uma responsabilidade muito maior".

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