Tido como o homem que estabeleceu as bases para a moderna mineralogia, o Flamengo Anselmus de Boodt, acrescentou ao seu século XVI a obra que reunia todas as rochas e minerais conhecidos na época. Gemmarum et Lapidum Historia serviria nos séculos seguintes como compêndio para reconhecer falsas joias, catálogo de diamantes e referência para geólogos. A obra, publicada em 1609, incluía a descrição de uma família de pedras que há séculos era tida como cura para padecimentos. Melancolia, febres, epilepsia e varíola, encontravam, acreditava-se, tratamento nas pedras de bezoar, também usadas como antídoto para envenenamentos por ingestão de arsénico..A Pedra de Bezoar era, contudo, uma intrusa na obra de Anselmus de Boodt. Não é no mundo mineral que a Bezoar cunha a sua origem. Para lhe determinarmos os princípios, há que encontrar-lhe os elementos constituintes: cabelos, sementes, caroços de frutas, pequenas pedras, acumulados no trato gastrointestinal de animais de cascos e ruminantes. A Pedra de Bezoar é um depósito esférico endurecido de material indigestível que se forma no estômago ou intestinos de cabras (Bezoar também é cabra montanhesa das terras altas da Turquia, Irão e Afeganistão), ovelhas, camelos, veados, porcos-espinhos asiáticos. A ação peristáltica, a agitação dos músculos do trato intestinal, força as massas endurecidas a assumirem uma forma esférica, em tudo semelhante a uma pequena pedra. Encontradas no aparelho digestivo de animais sacrificados, as bezoares, também conhecidas como Bezar, Bazar, Pazar, ganharam, a Oriente, o estatuto de droga mágica. Na antiga Pérsia, ainda antes de Cristo, encontramos a origem do termo Bezoar; Padzahr, palavra que define "contra-veneno". Era, então, crença que mergulhada ou dissolvida pequena quantidade da pedra no líquido envenenado, esta tornava inerte a ação da peçonha..Quando no século XII médicos árabes introduziram as bezoares nas práticas de cura ocidentais, as pedras traziam mais do que a oportunidade de combater as maleitas, onde se incluía o aborto espontâneo. As bezoares evocavam o fascínio de terras distantes e uma prolífera literatura que lhes dava suporte. Um dos exemplos, o Picatrix, era livro que viajava desde o século XI, obra sobre magia e astrologia, originalmente escrita em árabe, mais tarde traduzida para o latim..Promessa de uma vida longa e defesa contra envenenamentos numa época em que deles se fazia arte de dissimulação em diferentes beberagens, as bezoares conquistaram o afeto das monarquias europeias. Monarcas possuíam um ou mais espécimes de bezoares, muitos deles ornados em peças de joalharia. No século XVI, Isabel I de Inglaterra, mantinha a sua bezoar suspensa numa bracelete que mergulhava amiúde em bebidas. Boticários e médicos do Renascimento incluíam as pedras vistas como mágicas nos seus tónicos..Entretanto, subia o valor de mercado das bezoares, tão elevado como o precioso ouro. Uma procura crescente que não acompanhava a oferta. Porta aberta para que a Oriente nascesse todo um mercado de bezoares falsificadas onde, não raro, era acrescentado aos ingredientes utilizados o perigoso mercúrio..Bezoares artificiais, também chamadas Pedras de Goa ou Pedra Cordial que "gozaram em Portugal de grande popularidade, principalmente nos séculos XVI e XVII, como cardiotónico e também para tratamento das febres ardentes, pestes e outras moléstias tidas por venenosas", como explica a antropóloga e investigadora Ana Maria Amado em artigo (A famosa Pedra Cordial de Goa ou de Gaspar António) que pode ser consultado no site do Instituto Cultural, entidade sediada em Macau..Na época, a Companhia de Jesus, estabelecera-se em Goa, Índia, no Colégio de São Paulo. Aí, na botica, produziam uma farmacobezoar, exportada para o Reino e onde, entre outros ingredientes, se incluíam chifre de Narval, âmbar, coral, argila, conchas e resina. Bezoares a Oriente que, por seu turno, eram falsificadas por boticários goeses que encontravam, longe, em Lisboa oportunidade de negócio. Prejudicada, a Companhia de Jesus pediu intervenção real, o que aconteceu em 1675 quando carta régia determinou que se exportassem apenas as pedras autênticas.."Quando em 1759 a Companhia de Jesus foi expulsa do território português, o segredo da Pedra Cordial foi cedido aos padres Capuchos do Convento da Madre de Deus de Goa", refere Ana Maria Amado no trabalho já citado. Na botica a preparação fez-se até ao século XIX..A partir de oitocentos com a evolução da medicina, a utilização das pedras de bezoares entrou em declínio. Séculos antes, em 1567, o anatomista francês Ambroise Paré, considerado um dos pais das técnicas de cirurgia e medicina no campo de batalha, procurava fazer prova da inutilidade médica das pedras "mágicas". Condenado à morte por enforcamento, um cozinheiro da corte do rei Carlos IX de França, concordou trocar a pena por envenenamento. Ambroise Paré acrescentou pó de Bezoar à bebida letal. Horas mais tarde, o cozinheiro morria em agonia..Sem agonia, antes como objeto para satisfazer a curiosidade dos visitantes, o Museu da Farmácia, em Lisboa, expõe um exemplar de pedra de bezoar do século XVIII. Não mais de 8,3 cm de comprimento e 10 gramas de peso que guardam uma história de poder, esperança e enganos..A família das bezoares inclui, entre outras, a Tricobezoar, massa formada por cabelos; Gema de Bezoar, com origem em materiais como areia e pedras que, com o tempo, adquirem camadas de cálcio, assemelhando-se às pérolas das ostras. Acresce as Fitobezoar, composto por materiais vegetas indigestíveis como a celulose. Já a Farmacobezoar, conta com mão humana, produzida a partir de fármacos ou outros elementos..dnot@dn.pt