Cabe aos astrónomos dar o primeiro alerta face à aproximação do cometa à Terra. Com o desenrolar das semanas, instala-se o pânico ante a previsível rota de colisão do corpo celeste com o nosso planeta. Ao aproximar-se o momento do impacto, os humanos sentem alegria, seguida de dor e delírio. Com a perda de azoto, a atmosfera encontra-se inundada de oxigénio puro. O céu explode num cataclismo de fogo à chegada do cometa. No seu conto de dezembro de 1839, The Conversation of Eiros and Chasmion (publicado em 1890 pela primeira vez em Portugal, sob o título Colloquio entre Eiros e Chasmion), o escritor Edgar Allan Poe transporta para o seu universo literário o diálogo entre dois mortos. Eiros, sucumbido ao cataclismo, explica a Chasmion, falecido dez anos antes, os porquês do fim do mundo..À catástrofe em que Poe enredou a humanidade no conto publicado pela primeira vez na revista norte-americana Gentleman´s Magazine não era estranho o espírito da época. Quatro anos antes, de agosto a novembro de 1835, a aproximação ao planeta Terra do cometa periódico Halley suscitara temores antigos de fim do mundo. Antes, em 1831, William Miller, pregador e também oficial no exército norte-americano, previra o fim do mundo a 22 de outubro de 1844. O mesmo Miller profetizara o ano de 1840 como a data para a dissolução do Império Otomano, que sobreviveria até 1922, assim como o Mundo resistiu ao fim bíblico anunciado para o mês de outubro de 1844. O erro de cálculo de Miller ficaria conhecido como o Dia do Grande Desapontamento..Em 1894, uma outra história sobre o fim dos tempos nasceu da veia criativa de um francês, astrónomo, psíquico e divulgador científico. Camille Flammarion, autor prolífero, entregou aos escaparates a novela de ficção científica La Fin du Monde (O Fim do Mundo), ao situar o enredo no século XXV. Nesse futuro distante, um cometa impregnado de dióxido de carbono chocaria com a Terra, pretexto para Camille Flammarion abordar questões filosóficas e políticas..Se no final do século XIX, a ficção futurista de Flammarion não extravasou o campo da ficção, já as suas declarações de 1910 arrastariam o planeta para meses de pânico e angústia. Na época, Camille construíra uma carreira como astrónomo. Nascido em 1842, ingressara aos 16 anos no observatório de Paris. Nas décadas seguintes, fez-se autor de livros de grande popularidade sobre astronomia de que é exemplo a obra de 1862, La Pluralité des Mondes Habités (A Pluralidade dos Mundos Habitados). O título, com dezenas de edições, faz um estudo comparado dos planetas, com considerações sobre a habitabilidade da Terra e a possibilidade de vida inteligente noutros mundos. Camille seguia a linha do astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli, que popularizou a imagem de canais a sulcar a superfície do planeta Marte. Para Flammarion, os canais artificiais eram a prova antiga da existência de uma civilização inteligente que procurara sobreviver num mundo moribundo..O próprio Camille Flammarion vogava entre vários mundos, um deles o dos fenómenos paranormais, nomeadamente a telepatia e as manifestações mediúnicas. Uma foto de 1898, revela o encontro do astrónomo francês e da médium italiana Eusapia Palladino. Na imagem, captada na sala de estar de Flammarion, uma mesa levita sob as mãos dos presentes. Eusapia mereceria a atenção de científicas, como o psiquiatra e cirurgião italiano Cesare Lombroso, do físico francês e Nobel da Física, Pierre Curie e do filósofo russo Alexandre Aksakof, sem que à transalpina fosse atribuída particular credibilidade..DestaquedestaqueA teoria defendida por Camille Flammarion ateou as manchetes de jornais nas duas margens do Atlântico..Já a credibilidade de que gozava Flammarion, fundador em 1883 do observatório Juvisy-sur-Orage, permitia-lhe ser personalidade escutada pela imprensa da época. Após a sua aparição em 1835, o cometa Halley fazia uma nova aproximação à Terra em 1910. A determinação da periodicidade do cometa no seu avistamento a partir do nosso planeta (um ciclo de 75 ou 76 anos), seria estabelecida no século XVII pelo astrónomo inglês Edmond Halley. No final da primeira década de 1900, Halley abeirava da Terra o seu corpo de gelo com 15 Km de comprimento por 8 Km de largura. Fazia-o a mais de 200.000 Km/h numa aproximação ao nosso planeta num período que duraria de abril a julho. Contudo, não foi o temor do impacto do corpo celeste que enredou a Europa e os Estados Unidos num vórtice ascendente de angústia. A cabeleira do cometa, alongando-se por milhões de Km, deu azo a especulações sobre a sobrevivência da humanidade. Acreditava-se que no momento em que a Terra se aproximasse da cauda do cometa Halley, um dos seus compostos, o gás cianogénio (detetado numa análise espectroscópica), impregnaria a atmosfera de um veneno fatal para toda a vida no planeta..A teoria defendida por Camille Flammarion ateou as manchetes de jornais nas duas margens do Atlântico. O New York Times fez-lhe destaque de primeira página; o San Francisco Call noticiava em fevereiro de 1910 que o "Cometa pode matar toda a vida na Terra, dizem cientistas". Em França, o jornal Le Parisien destacava "A data fatal"; em Portugal, o jornal Novidades anunciava a 10 de janeiro: "O fim do mundo? A cauda do cometa de Halley envolverá a Terra...e morreremos, talvez, asfixiados", como nos dá nota o historiador Joaquim Fernandes no capítulo "Halley, o Cometa da República", no seu livro de 2021, Apocalipses. Imprensa que na procura de notícias suculentas omitiu das declarações de Camille o termo "possível". O astrónomo não dava como fatal o contacto..A própria comunidade de astrónomos concordava na baixa probabilidade de a tragédia acontecer. O cianogénio decompor-se-ia na atmosfera superior. Contudo, instalara-se o pânico e toda uma cadeia de oportunidades comerciais: comprimidos (produzidos a partir de açúcar e quinina) e guarda-chuvas anti-cometa, máscaras de gás, materiais para selar as portas e janelas das casas, o chapéu-cometa. Na noite de todas as angústias, de 18 para 19 de maio de 1910, igrejas em França e Itália mantiveram as portas abertas para receber crentes. Nas ruas de Paris, a empresa Air Liquide recolhia amostras de ar. Não foram encontrados vestígios de cianogénio. A humanidade sobrevivera à "Falência do cometa", como sublinhava o jornal Le Petit Parisien na edição de 20 de maio de 1910. Camille Flammarion assistira à passagem do cometa Halley na companhia de Gustave Eiffel, a partir da torre parisiense, inaugurada em 1889, que recebera o nome do engenheiro francês..Nos anos seguintes, até à data da sua morte, em 1924, Camille Flammarion prosseguiu os estudos em astronomia, determinado em provar a existência de vida em mundos distantes. "Gosto de imaginar esses globos errantes [cometas] povoados com astrónomos que ali estão para contemplar a natureza em grande escala, como nós, a contemplar em pequena escala. O seu observatório móvel, vogando de um sol para outro, fá-los passar sucessivamente por todos os pontos de observação (...) conhecem os detalhes e o conjunto", escreveu o francês na obra A Pluralidade dos Mundos Habitados..dnot@dn.pt