Revela particular apetência por florestas antigas, com um coberto arbóreo moderadamente denso e em climas temperados europeus. Habita os interstícios de árvores mortas, muitas delas tombadas, onde se alimenta. Grande parte da sua curta vida, de três a quatro anos, passa-a sob a forma larvar. Dá-lhe, a voz popular, mais de 30 nomes. Eis oito: cabra-loura, chucha-pitos, abadejo, escaravelho-veado, Cornélia, carocho, corna-loura ou, mais comummente designado, vaca-loura. Nomes comuns por associação aos carateres exibidos por este escaravelho, entres os maiores da Europa.No auge da sua existência, o Lucanus cervus, assim o batiza o léxico científico, ostenta mandíbulas que podem ultrapassar os 8cm de comprimento nos machos, mais modestas nas fêmeas. Enormes hastes se tomarmos por referência o microcosmo onde habita. Acresce uma couraça brilhante, uma cabeça e tórax negros e um abdómen e pinças acastanhados. Pertence à família dos Lucanídeos, dos quais se conhecem outros três representantes em Portugal.O estudo da vaca-loura, e das florestas que a acolhem, preenche desde há mais de uma década o quotidiano de João Soutinho. Atualmente estudante do Programa Doutoral em Biodiversidade, Genética e Evolução da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), o biólogo de 29 anos sabe que cada minuto que dispensa ao estudo dos escaravelhos e à sua disseminação no nosso país, fá-lo de olhos postos numa grande escala. A saúde da vaca-loura, espécie protegida, é um indicador dos habitats onde a encontramos, a par de uma existência com milhares de espécies vegetais, animais e microrganismos. “Entrei em Biologia na FCUP em 2013. No 1.º ano frequentei a disciplina de Biologia dos Invertebrados. Apaixonei-me pelo mundo dos insetos. Percebi que poucos investigadores se dedicavam ao tema. Na época, voluntariei-me para um projeto que decorria na Mata do Buçaco, coordenado por uma equipa da Universidade de Aveiro. Foi o primeiro contacto com a vaca-loura, assim como outros organismos que se associam a madeiras mortas. Antes de viajar para a Alemanha, onde fiz um estágio com especialistas no tema, participei num congresso na Bélgica. Aí, contactei com uma rede de cientistas interessados neste escaravelho, em árvores mortas ou muito antigas. Procuravam parceiros em diferentes países e voluntariei-me. Em Portugal, vim a desenvolver o projeto VacaLoura.pt, coordenado pela Associação Bioliving e com a colaboração da Unidade de Vida Selvagem do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro, da Sociedade Portuguesa de Entomologia e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas”, detalha João Soutinho. . O biólogo fala com entusiasmo das pequenas criaturas que já lhe tomaram milhares de horas de trabalho de campo: “Os Lucanídeos são conhecidos por terem umas mandíbulas hiperdesenvolvidas. A vaca-loura é um caso particular. Os ingleses chamam-lhe escaravelho-veado, pois as mandíbulas assemelham-se a hastes. Na forma adulta, como o conhecemos, só vive dois a três meses - a maior parte da sua existência é como larva. O seu objetivo é acasalar para morrer logo de seguida. Aparecem na primavera e têm o pico de atividade em junho e julho. As fêmeas podem ser vistas até setembro.” Acresce que na vaca-loura e noutros escaravelhos desta família, a larva desenvolve-se em madeira em decomposição e, neste caso em particular, em madeira em contacto com o solo ou mesmo em árvores vivas muito antigas. Diz-nos João: “As larvas decompõem a madeira e devolvem inúmeros nutrientes ao solo.”Sobre a vaca-loura pendem ameaças. Conta-nos o biólogo: “É cada vez mais raro, porque precisa de carvalhos para sobreviver. À medida que convertemos as florestas nativas em florestas de produção ou em cidades e zonas agrícolas, desaparece o habitat destes escaravelhos. Hoje, a espécie não é muito comum e a tendência é de declínio.” Às palavras de João Soutinho junta-se a seguinte informação. O Lucanus cervus consta no Anexo II da Diretiva Habitats (espécie cuja conservação exige a designação de zonas especiais de conservação), no Anexo III da Convenção de Berna, e está classificada como “Quase ameaçada” pela UICN - União Internacional para a Conservação da Natureza.Presentemente no seu doutoramento, João Soutinho, também investigador do CIBIO-InBIO, procura compreender como valorizar as árvores de grande dimensão no contexto da biodiversidade que albergam. Já este mês de janeiro, o biólogo publicou na revista Biodiversity and Conservation, com o contributo de vários investigadores portugueses, os resultados do projeto que vem a coordenar. Da publicação sobre a distribuição, ecologia e nicho ambiental de quatro Lucanídeos encontrados em Portugal retiramos que “os resultados apontam que, para melhorar a conservação destas espécies, é fundamental valorizar as florestas nativas em Portugal”. Contas feitas, somam-se até ao momento mais de 7000 observações de escaravelhos no nosso país. “O propósito do projeto é compreender a distribuição da espécie. Com o contributo de milhares de cidadãos, conseguimos quadruplicar a área conhecida da distribuição no país. Percebemos que a vaca-loura habita zonas mais temperadas, no noroeste, com algumas populações isoladas, por exemplo em Sintra, Bragança e Sabugal. Procura florestas antigas, com árvores de grande dimensão, em zonas com encostas viradas a norte. Deter um mapa com a distribuição da vaca-loura permite-nos perceber onde pôr em prática ações de conservação da natureza.”“Em paralelo ao projeto VacaLoura.pt fui-me dedicando a um conjunto de iniciativas ligadas a árvores de grande porte. Ao terminar o mestrado e iniciar o doutoramento passei a ter um papel mais ativo na preservação das florestas. Estou ligado à associação Verde com um projeto a que chamamos Gigantes Verdes, com a preservação e regeneração de árvores de grande porte. A iniciativa estende-se à Região do Vale do Sousa e Serras do Porto e com concelhos pioneiros no distrito da Guarda. Em Lousada, no distrito do Porto, conhecemos e estudámos até à data 7400 gigantes.”