Não raro vemos associada à palavra “velhice” o termo “indignidade” na forma como os mais idosos são encarados e acompanhados. Em Portugal estamos a envelhecer com indignidade?Dignidade humana tem a ver com salvaguarda de direitos e liberdades fundamentais. Quando alguém é privado do exercício dos seus direitos e liberdades, esse alguém vive de forma indigna. Ora, quando sabemos que cerca de 30% das pessoas com 65 e mais anos, em Portugal, declaram não ter capacidade financeira para manter a sua casa aquecida no inverno, segundo dados do documento EU-SILC 2023, valor que sobe, de acordo com a mesma entidade, para cerca de 37% entre aqueles que têm uma limitação severa na sua capacidade funcional, então temos uma vivência indigna da velhice por violação do direito a um espaço habitacional adequado. Ou, quando percebemos, a partir do último inquérito europeu de saúde, de 2019, que mais de 30% das pessoas mais velhas declarou não poder obter os cuidados de saúde oral de que necessita por razões financeiras, temos um problema de indignidade por violação do direito de acesso a cuidados de saúde, neste caso num domínio particularmente impactante na qualidade de vida. Falamos de um envelhecimento indigno quando a experiência de se ser velho é precária, com necessidades fundamentais que não são satisfeitas, com baixa qualidade de vida. E isto, infelizmente, ainda é algo que caracteriza larguíssimos segmentos da população mais velha em Portugal..No resumo que fez à sua conferência de 20 de novembro indica que se “parte da premissa sociológica de que a vida na velhice reflete as trajetórias de vida em fases anteriores, estando fortemente condicionada pela qualidade dessas trajetórias”. De que forma fatores como género, classe social e localização geográfica amplificam ou mitigam, no presente, a vulnerabilidade na velhice em Portugal?Ao longo da vida vamos tendo oportunidades, ou a falta delas; vamos acumulando recursos ou vivemos privados deles, vamos, no fundo, construindo trajetórias de vantagens e desvantagens. Nesse processo, que tem seguramente, também, uma componente individual, existem eixos de diferenciação que remetem para dimensões mais estruturais daquilo que normalmente designamos como desigualdades socias e que têm grande impacto na forma como vamos envelhecendo. Por exemplo, nós sabemos que há um problema grande de pobreza na velhice, em Portugal, que afeta desproporcionalmente mais as mulheres. E isso decorre do facto de elas terem pensões, em média, mais baixas. Mas têm-no em larga medida porque têm trajetórias de participação no mercado de trabalho que foram elas próprias marcadas por desigualdades e desvantagens. Ainda recentemente se discutia a persistência da desigualdade salarial entre homens e mulheres. Essa desigualdade afeta a vida das pessoas até ao fim, nomeadamente vai refletir-se nos montantes das pensões de reforma. Outro exemplo que podemos dar remete para a questão territorial. De acordo com os dados do European Health Survey 2019, em Portugal, 5,6% das pessoas com 65 ou mais anos não obtiveram cuidados de saúde por causa da distância física aos cuidados. Mas em zonas rurais esse número sobe para 7,1%. Ou seja, onde vivemos condiciona muito a forma como envelhecemos e pode representar mais ou menos facilidade, mais ou menos obstáculos..De que forma a evolução dos modelos familiares e a mobilidade laboral têm influenciado as redes de apoio aos idosos?Esta é uma questão complexa, mas essa complexidade não pode funcionar como desculpa para a inação. Mas, gostaria de separar as coisas e não confundir apoio assistencial, aquilo que as pessoas normalmente designam como cuidar de alguém, com relacionamentos afetivos e suporte familiar. No primeiro caso, estamos a falar de um domínio que não é claro para mim que tenha ou deva obrigatoriamente acontecer no seio da família. No nosso país continuamos muito presos, até na esfera da decisão política, ao princípio familista: a crença de que família é o principal recurso de suporte para satisfazer as necessidades dos mais velhos quando há problemas de dependência e fragilidade. Na minha perspetiva é urgente desfamilizar o sistema de respostas às necessidades de cuidado dos mais velhos, até porque são muitos os fatores que impedem que as famílias assumam essa função. Coisa diferente é falarmos da qualidade das relações familiares, das trocas de afetos, dos encontros, das trocas intergeracionais, que estão efetivamente muito pressionadas por dificuldades que criam distância entre as pessoas, por exemplo, na sequência de processos migratórios ou por mercados de trabalho desregulados que dificultam a conciliação da vida profissional com a vida familiar. Note que, de acordo com os dados do EU-SILC, para 2022, 11,4% das pessoas com 65 ou mais anos, em Portugal, declararam ter tido contacto com familiares no último ano no máximo uma vez ou nem isso. Essa percentagem sobe para 14,5% entre aqueles que têm 75 ou mais anos..A forma como a sociedade retrata a velhice, nomeadamente no discurso político, nos media e nas políticas públicas, está a gerar uma nova ideia de velhice ou perpetua preconceitos associados a esta fase da vida?Nesta matéria, às vezes não consigo evitar a sensação de que damos dois passos em frente, para logo de seguida darmos um para trás. Ou seja, na grande história das coisas temos de reconhecer que já evoluímos bastante, enquanto sociedade, na forma como retratamos a velhice, nomeadamente afastando-nos de uma visão mais patológica, que associa velhice a doença, perda, desvinculação. Mas há ainda muito a fazer, em diferentes domínios, para ultrapassarmos o idadismo estrutural que marca a nossa sociedade. Recuemos um pouco e reflitamos sobre a forma como foi gerida a questão do impacto desproporcionalmente maior da Covid-19 entre os mais velhos e pensemos nos discursos públicos e políticos a esse respeito..Quer recordar-nos esses discursos?Oscilaram, na altura, entre uma implícita desvalorização da vida humana na idade avançada - ouvíamos diariamente reportar os números de óbitos, que quando altos eram invariavelmente acompanhados da conjunção adversativa “mas” para desvalorizar essa grandeza, afirmando-se “mas eram sobretudo pessoas com mais de x anos”, como se isso retirasse gravidade aos números - e um idadismo benevolente que se traduziu, muitas vezes, em grande violência para os mais velhos – na altura, generalizou-se a ideia de que era legítimo impor mecanismos de isolamento extremo dos mais velhos, porque era para os proteger, sem atender às preferências dos próprios e sem espaço para que exercessem, em liberdade, o seu direito a escolher como vivem. Em qualquer dos casos, e sem que disso os agentes sociais tivessem consciência, o que estava em causa era uma manifestação profundamente idadista do que significa ser velho na sociedade..Face ao envelhecimento da população portuguesa parece-lhe existir um debate sério a nível nacional no que respeita à reconfiguração demográfica da nossa sociedade?Custa-me muito responder a esta questão porque tenho de responder não. E não é por falta de alertas por parte da comunidade científica que há anos se dedica ao estudo desta matéria. Note que eu não tenho uma visão pessimista sobre o envelhecimento demográfico. Na verdade, e no que diz respeito à componente que envolve ganhos em esperança média de vida, é algo a celebrar. Mas se temos um modelo de organização social que está montado sobre determinadas premissas demográficas, e se essas premissas demográficas não se verificam, então temos um problema de sustentabilidade do modelo de organização social. E das duas uma: ou mudamos o modelo de organização social; ou procuramos reequilibrar as premissas demográficas do modelo que temos. E é bom que as pessoas percebam isso ou corremos todos o risco de vir a ser ultrapassados pela realidade dos factos. Considero urgente esse debate, que tem de ser feito com muita clareza, e com uma boa dose de coragem para colocar as coisas como elas são. E isto sobretudo para envolver a população num assunto que é um assunto de interesse nacional e para desmistificar algumas ideais que circulam e parecem ganhar tração e que, a consolidarem-se, agudizarão ainda mais o problema. Refiro-me em concreto ao tema da imigração e à sua enorme importância para “segurar” o nosso modelo de organização social no que aos principais sistemas de produção e de proteção social diz respeito..Os planos e estratégias para o envelhecimento ativo e saudável em Portugal têm tido vida curta. Ainda em janeiro deste ano foi publicado em Diário da República o Plano de Ação para o Envelhecimento Ativo e Saudável. Mais recentemente, percebeu-se que o mesmo estava em risco, embora o novo Executivo anuncie novas medidas. O que lhe ocorre dizer a propósito deste tema?Pois, é efetivamente uma perda de tempo continuarmos neste registo de interrupção sistemática de processos que são, por natureza, processos longos com impactos de médio e longo prazo. Há questões que não podem ser acomodadas no espaço temporal dos ciclos políticos e é imperativo que não sejam interrompidas em função desses ciclos políticos. Parece-me que o que se estará a passar com o Plano de Ação para o Envelhecimento Ativo e Saudável é mais um exemplo disso. Podemos sempre discutir os seus conteúdos mais específicos, revendo-os, ajustando-os, mas o facto é que o Plano enquanto um todo envolve uma visão de médio e longo prazo que me parece orientada pelos princípios certos. Ele representa uma visão integrada de para onde queremos caminhar. Não podemos estar sempre a regressar ao ponto zero e a rever a visão. É que ao fazê-lo corremos o risco de nunca passarmos da fase de definição de planos, condenados que estarão a nunca se traduzirem em nada de concreto e material..O ciclo de conferências “No ocaso da vida” prossegue a 27 de novembro com a presença do físico Yasser Omar com o tema “Os idosos e a sociedade digital”..Link para aceder à conferência: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/99271917056