Romeo Castellucci põe Jesus Cristo a olhar para as misérias do mundo
Um homem cuida do seu velho pai, que sofre de incontinência fecal. É uma situação extremada. O amor deste filho é colocado à prova. A sua paciência também. Ele limpa o pai e logo a seguir tudo volta a ficar sujo. O cheiro é insuportável. O pai está tristíssimo perante a sua impotência. Há uma raiva acumulada em ambos. Por trás, enquanto tudo isto acontece, há uma imagem enorme com o rosto de Jesus Cristo (a obra Salvatore Mundi, de 1465, do pintor Antonello Da Messina).
Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus é o espetáculo do italiano Romeo Castellucci, estreado em 2010, e que esta semana chega ao Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Castellucci é um dos nomes incontornáveis no teatro europeu contemporâneo, fundador, em 1981, da Societas Raffaello Sanzio e vencedor, em 2013, do Leão de Ouro da Bienal de Veneza. É também um criador conhecido conhecido pela sua irreverência. E este espetáculo é um bom exemplo disso. Quando foi apresentado em França, em 2011, provocou a ira entre os católicos mais extremistas. Como sempre acontece nestes casos, a maioria dos que se manifestaram não viu a obra nem pensou sobre ela. Bastou-lhes saber que usa o nome de Deus e uma imagem de Cristo para a rejeitar.
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Castellucci recusa estas reações simplistas e pede-nos que olhemos para o palco sem preconceitos. Na primeira sequência, a relação entre pai e filho é especialmente tocante e é quase impossível não nos projetarmos naquela situação. No entanto, o exagero das fezes no palco e a presença constante da imagem de Jesus, trazem outros significados. "A dimensão escatológica ultrapassa todo o realismo e a situação torna-se metafísica", explicava o encenador por ocasião da estreia. "Passamos da cropologia [o estudo das fezes] à escatologia [o encontro entre a teologia e a filosofia que reflete sobre o fim do mundo]". No segundo momento um grupo de crianças apedreja a reprodução do quadro que é, em seguida, destruído por três alpinistas que revelam a frase "(Não) És o meu pastor".
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A partir daqui, as interpretações são livres. "É um espetáculo que nos coloca a nós, público, numa situação de desconforto. Temos que pensar sobre ele", afirma Aida Tavares, diretora do São Luiz. É também por isso que, para além do espetáculo, o programa inclui a projeção integral em vídeo do ciclo Tragedia Endogonidia, ao longo de toda a semana; uma masterclass de Castellucci para estudantes e profissionais das artes performativas; uma conversa do encenador com o público, após a sessão de sábado à noite, e, no domingo, às 15.00, um debate com Maria Filomena Molder, Monica Calle José Tolentino de Mendonça.
"Normalmente fico desapontado quando compreendo tudo", diz Romeo Castellucci. "Há uma linha que se prolonga para lá do que se está a passar entre o palco e a plateia e que, provavelmente, só se vai revelar nos dias seguintes. O teatro não pode ser um lugar de consumo. É antes de mais um espaço problemático porque questiona e exige que o espectador invente."