Júlio Pomar (1926-2018): Morte? "Descansar, rapazes"

O artista plástico Júlio Pomar morreu esta terça-feira aos 92 anos.
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Nome? "Pomar para os de fora, Júlio para os íntimos." Para uns terá morrido Júlio, para a maioria morreu Pomar. A referência é do Auto-retrato, citado na revista Espiral do Tempo. É ali ainda que diz quanto à morte - adivinha-se o seu sorriso: "Descansar, rapazes." O descanso chegou ontem, aos 92 anos, depois de um internamento prolongado no Hospital da Luz.

"Trabalhou quase até ao fim da sua vida", diz ao DN Sara Antónia Matos, diretora e curadora do Atelier-Museu Júlio Pomar. "Foi um pintor do movimento, da dinâmica, procurava a gestualidade, as suas figuras saltavam da tela como que para o espaço do espectador. Penso que todo o percurso dele foi no sentido do movimento: foi para olhar para a frente e não para trás. Acho que o nosso dever será sempre de olhar para a frente, e não para trás, sempre no sentido de perceber o que é que a obra dele semeou na história da arte."

Júlio Pomar nasceu em 1926 em Lisboa. Se o tivéssemos visto em criança, apanhá-lo-íamos "de rabo para o ar, a fazer bonecos em todos os papéis que apanhava", contou ao DN em 2016. "Era uma criança muito metida comigo, que se refugiava no gosto e na prática quase excessiva do desenho." Essa criança haveria de "ajudar a história de arte portuguesa a construir-se com ele", segundo Sara Antónia Matos.

Almada Negreiros foi a primeira pessoa a comprar-lhe um quadro, Os Saltimbancos. Pomar tinha 16 anos e expunha num ateliê na Praça das Flores. O pintor passou pela Escola António Arroio e pela Faculdade de Belas-Artes, mas dizia que Velázquez lhe ensinara mais do que todos os professores que teve.

Jovem opositor ao regime salazarista e membro da comissão central do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, Pomar esteve preso em Caxias durante quatro meses. Tinha 20 anos. Um dos seus parceiros de cela era Mário Soares, de quem permaneceu amigo até ao fim da vida deste. Traçara o retrato do amigo enquanto jovem, na prisão, e viria a fazê-lo muito mais tarde, no início da década de 90, criando o retrato presidencial de Mário Soares que hoje figura em Belém, e que na época causou grande polémica por contrastar com a habitual seriedade e formalismo com que os restantes presidentes portugueses foram pintados. Soares ria-se.

O artista rebelde

"Nunca ouvi o Júlio queixar-se. Tomou isso como um dever de cidadania. Esteve preso, exilado. O que o Júlio queria era liberdade. Isso era fundamental", afirmou Carlos do Carmo, uma das vozes que interpretaram fados escritos pelo artista.

A prisão valeu-lhe a interrupção da pintura dos frescos de mais de cem metros quadrados no Cinema Batalha, no Porto, que fora convidado para pintar com apenas 20 anos. Dois anos depois, a obra era tapada pela censura do Estado Novo. No ano passado, Rui Moreira anunciava que o pintor iria regressar aos murais na sequência da recuperação do cinema pela autarquia. "Ficou muito contente quando lhe falei do projeto do Batalha, acreditou que iríamos concretizar o restauro", fez saber o autarca do Porto.

"Nós devemos a Júlio Pomar a abertura de Portugal ao mundo e a entrada do mundo em Portugal, desde logo, durante a ditadura, não apenas como pintor, não apenas como desenhador, mas como grande personalidade da cultura", afirmava ontem Marcelo Rebelo de Sousa, falando desse artista "profundamente rebelde".

A prisão valeu-lhe a interrupção da pintura dos frescos de mais de cem metros quadrados no Cinema Batalha, no Porto, que fora convidado para pintar com apenas 20 anos. Dois anos depois, a obra era tapada pela censura do Estado Novo. No início de fevereiro de 2017, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, anunciava que o pintor iria recuperar os murais na sequência da recuperação do cinema pela autarquia.

Ainda durante o Estado Novo, foi Soares quem apresentou Pomar ao general Norton de Matos na altura da campanha às presidenciais de 1949 como pintor para lhe traçar o retrato. Tal deu-lhe "imensa popularidade entre os alunos" da Escola Afonso Domingues, onde era professor, lembrou ao DN, mas também lhe valeu o despedimento. A partir daí, passou a ter de viver da pintura, e assim faria até ao fim.

Obras como O Ganhadeiro (1946) e O Almoço do Trolha (1946-50) são tanto símbolos maiores do neorrealismo português e da juventude de Pomar como do protesto social que encerravam em si. Veja-se, por exemplo, o rosto marcado do trolha. Abandonado o neorrealismo, seguem-se obras como Maria da Fonte (1957) e séries onde o movimento é um dos traços predominantes, como Tauromaquias (1960-64) ou Les Courses (1964-66), que representava corridas de cavalos e que Pomar expôs em Paris, cidade para onde partiu em 1963, aos 37 anos. Vieram depois trabalhos que experimentavam novas linguagens - entre elas a assemblage - como Rugby, Maio 68 ou Le Bain Turc, d'après Ingres (1971), que foi mostrado no Museu do Louvre numa exposição dedicada ao mestre francês Ingres.

A literatura marca fortemente a obra de Júlio Pomar. Captou Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, por várias vezes, a primeira das quais em 1959, para a ilustrar a edição traduzida por Aquilo Ribeiro. Guerra e Paz, de Tolstoi, A Divina Comédia de Dante, ou Pantagruel de Rabelais têm ilustrações suas. Para não falar dos escritores que retratou, de António Lobo Antunes - o amigo que uma vez disse à RTP que "há sempre uma gargalhada nos quadros dele" -, a Camões e Fernando Pessoa (que podem ser vistos na estação de metro de Alto dos Moinhos, em Lisboa), ou Baudelaire. Ele próprio escreveu duas coletâneas de poemas, Alguns Eventos (1992) e TRATAdoDITOeFEITO (2003), ambos editados pela Dom Quixote.

Na década de 90, Pomar expõe em Paris Los Indios e Les Indiens, retratando aqueles que conhecera ao passar algum tempo no Alto Xingú, Amazónia. Júlio Pomar lança-se à pintura das obras - de grandes dimensões - ao saber que tinha um cancro, conta no documentário da RTP Júlio Pomar - O Risco. Nele, a certa altura, diz: "E quanto à morte, fazemos o possível por que ela não entre nas conversas, quando afinal é uma das cores da paleta".

Além da pintura deixou desenho, gravura, escultura, tapeçaria ou trabalhos de cenografia. Numa visita do DN ao seu ateliê em dezembro de 2016, perguntámos-lhe em que trabalhava. "Vai-se rir. Estou a fazer um retrato de família que me foi encomendado por um senhor que tem uma coleção de pintura. Estou sensivelmente há um ano a fazê-lo, quase exclusivamente. O senhor está ansioso. E o quadro vai-se transformando, transformando..." E acrescentaria, falando das limitações que a idade já lhe impunha: "Gostaria de trabalhar todos os dias, trabalho sempre que posso."

Da morte disse: "Descansar, rapazes", citava a revista Espiral do Tempo em Auto-retrato. Em 2004 instituiu a Fundação Júlio Pomar e, em 2013, o Atelier-Museu com o seu nome abriria portas, num projeto assinado por Siza Vieira na rua do Vale, em Lisboa, mesmo em frente à casa onde vivia com a mulher, Teresa Martha, e tinha o seu ateliê.

Expôs mundo fora, de Paris a Nova Iorque ou ao Rio de Janeiro, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito em 1989, com a Grande-Oficial da Ordem da Liberdade em 2004, ano em que, em França, foi ordenado Chevalier de L"Ordre des Arts et des Lettres. Foi condecorado pelo antigo Presidente da República Mário Soares e também por Jorge Sampaio. Em França, foi condecorado com a comenda das Artes e das Letras. Em 2013 recebeu o Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Lisboa. Aos 90 anos, dizia que ainda se sentia como um touro a entrar na arena. "Ai sim, sim, sim. Ainda me sinto assim, estonteado por aquilo que o ver me revela."

"Parecendo que não, é uma alegria saber que ele partiu num dia de sol e de primavera. Ele havia de gostar de saber isso", disse o escultor Pedro Cabrita Reis à Lusa. O corpo do artista plástico ficará hoje em câmara-ardente no Teatro Thalia, Lisboa. Com Lusa

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