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Então, porque não podemos viver de outra maneira, escrevemos. E cai--nos o cabelo e apodrecem-nos os dentes, como dizia Flannery O"Connor.

E não cortamos o cabelo, e temos de fazer um esforço para mudar de roupa, e pomos lembretes no telemóvel para tomar os antibióticos. E conduzimos depressa, e arranjamos chatices com as Finanças, e é uma sorte chegarmos vivos ao fim do dia, e às vezes acontece até não chegarmos.

E não telefonamos nos anos, nem aparecemos nos churrascos, nem vamos ao café. E, se vamos, a única coisa de que falamos é disso: do livro. E tudo aquilo sobre que se conversa pode servir ao livro, caso contrário não nos interessa.

E somos uns chatos. E somos maus maridos e maus filhos e maus amigos. E sentimos culpa, e sentimo-nos indignos de estima, e continuamos, mesmo assim, a não responder quando falam connosco.

E somos os maiores quando um parágrafo nos sai bem, e ficamos de rastos quando não encontramos um verbo. E sabemos que tem de ser assim, porque se não for o romance fica uma merda. Mas sentimos culpa na mesma.

E não pagamos as contas, e esquecemo-nos de pedir a garrafa do gás, e calçamos meias de pares diferentes. E de repente queremos fumar dois maços de cigarros e beber meia garrafa de uísque, no jardim, a olhar para a noite e a lamuriar.

E queremos desistir, e queremos ser ter um trabalho braçal, e queremos ser amigos. E queremos ser maridos e pais e atenciosos. E, quando ainda não perdemos de vez a esperança, escrevemos coisas como esta, para nos justificarmos.

E exageramos imenso. Mas continuamos escrevendo.

Entreguei esta madrugada o novo livro à editora. É o meu primeiro romance escrito no campo. Trabalhei nele durante mais de três anos, como um louco, e agora acho que precisava de só mais um dia.

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