José António Tenente: "Não tenho mesmo saudades de trabalhar no mundo da moda"
Este ano José António Tenente já criou os figurinos para nove espetáculos. E ainda só estamos em abril. Trocou o brilho das passerelles pela escuridão da plateia das salas de teatro e não está arrependido. Pelo contrário. O estilista de 52 anos está feliz, apesar de assoberbado pelo trabalho.
Consegue recuar no tempo e contar-me como era a sua relação com os espetáculos e com os figurinos que via em cena antes de estar envolvido neste meio?
Comecei em criança a ir a espetáculos. Por exemplo, foi a minha irmã que me levou à minha primeira ópera, devia ter uns 10 anos. A partir dessa altura também, fui desenvolvendo um grande gosto por dança, frequentei até aulas de ballet, passados uns anos, acompanhava fervorosamente o saudoso Ballet Gulbenkian. Não sei a partir de quando poderei ter passado a ter outro olhar sobre os figurinos, mas imagino que talvez a partir do momento em que comecei também a frequentar o curso de design de moda em 84. Às vezes é difícil não fazer isso, não estar a imaginar outras maneiras de fazer... mas agora enquanto espectador tento o mais possível limpar esse registo É muito cansativo não conseguir ver um espetáculo sem estar sempre a "trabalhar" e é bom estar aberto aos pontos de vista dos outros e perceber o que está por trás de cada opção.
Como surgiu a primeira oportunidade de fazer figurinos?
A criação de figurinos sempre me interessou e tive a sorte de cedo ter tido a oportunidade de começar a experimentá-la, fazendo vários trabalhos paralelamente à minha atividade principal. Comecei em 1990 no seguimento de um convite do Carlos Avillez que estava a encenar o Rei Lear de Shakespeare para o TEC - Teatro Experimental de Cascais. Nos anos seguintes colaborei com vários coreógrafos para o Ballet Gulbenkian. Era um miúdo na altura e apesar da minha memória ser uma lástima, tenho ideia que toda a experiência foi muito enriquecedora.
Como é que a experiência de estilista de moda se sente no figurinista? Ajudou-o ou, pelo contrário, prejudicou-o?
Sempre gostei muito das artes de palco, teatro, ópera, música. Muitas das minhas coleções, desde logo a primeira, foram por elas inspiradas. O lado teatral de histórias, personagens, a literatura, a pintura sempre fizeram parte das minhas referências. Em termos pessoais, a minha experiência enquanto designer de moda é uma mais valia para o meu trabalho enquanto figurinista. Mas, na verdade, não creio que isso seja fundamental. Não proponho nada por ser giro, ou por ter uma imagem de moda, seja lá o que isso for. Quando apresento alguma ideia é fundamentada por aquilo que me parece servir o espetáculo, mas é sempre um trabalho em construção, sujeito a discussão.
O trabalho do figurinista nunca pode ser visto isoladamente, o teatro é uma arte coletiva. Foi difícil habituar-se a esta nova realidade? Existe uma visão do encenador que se sobrepõe à visão figurinista?
Não só não tem sido difícil, como pelo contrário, tem sido um enorme gosto integrar projetos tão diferentes em dimensão e estilo, com equipas tão diversificadas, com meios envolvidos também muito diferentes. Há casos em que os encenadores, ou coreógrafos, estão muito abertos às propostas dos vários elementos da equipa, outros em que podem fornecer logo de início várias referências, imagens, e diretivas para os desenvolvimentos nas respetivas áreas que compõem o espetáculo. Na criação de figurinos, precisamente por estar integrado num coletivo, vejo-me como um instrumentista de uma orquestra, sem sequer pensar nessa questão de sobreposição de visões.
Este ano não tem parado. Já fez figurinos para teatro, ópera, dança...
É, de facto, muito entusiasmante e enriquecedor participar criativamente em projetos desafiantes, que me levam a trabalhar universos diferentes, a conhecer, ou revisitar, obras, autores, intérpretes tão distintos como, por exemplo, o que me tem acontecido desde o início deste ano em que comecei com A Flauta Mágica de Mozart, com o Atelier de Ópera da Metropolitana, logo seguida de Oresteia de Ésquilo numa encenação de Tónan Quito, depois com estreias em dias consecutivos, Montanha Russa, um texto original de Inês Barahona e Miguel Fragata, a partir de diários de adolescentes, e Idomeneo de Mozart, numa nova produção do Teatro Nacional São Carlos, e ainda em cena estão Casimiro e Carolina de Ödön von Horvath também numa leitura de Tónan Quito e Morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller, numa encenação de Carlos Pimenta. E agora quase a estrear em Braga, no Dia Mundial da Dança, Murmúrios de Pedro e Inês, um dueto coreografado por Fernando Duarte. E logo a seguir mais dança pela Companhia de Dança de Évora e terminarei o mês de maio com uma encenação de Tiago Torres da Silva de Pela água, um texto original de Tiago Correia.
Acha que olhando para os figurinos que faz é possível ver aí a linha Tenente, ou, como os figurinos são tão diferentes de espetáculo para espetáculo e estão tão dependentes de outros fatores, acaba por não haver essa marca?
Essas perguntas são sempre difíceis de responder "em causa própria". Creio que poderá haver traços comuns de sensibilidade estética, mas na verdade, os desafios são tão diferentes que as respostas também têm que ser muito diversas. Tomando como exemplo os dois espetáculos que estão em cena, Casimiro e Carolina e Morte de um caixeiro viajante, o resultado não podia ser mais diferente, tanto que as estéticas respetivas são diametralmente opostas, mas não sei se ainda assim, haverá alguma linha condutora...
Qual é a diferença entre criar roupa que vai estar à venda numa loja, para as pessoas comprarem e usarem, e roupa que vais ser usada por atores em cena num espetáculo?
Se considerarmos a essência da criação, estas duas vertentes têm muito em comum. O processo pode ser idêntico: uma inspiração concreta, a pesquisa, a seleção dos materiais, o desenvolvimento das propostas, a elaboração de testes ou protótipos, execução das peças. Numa coleção, de acordo com o meu método de trabalho, as primeiras ideias começam a surgir inspiradas por várias fontes possíveis; uma época histórica, um livro, um filme, música, uma figura real da história, das artes, da ciência, um personagem de ficção... são inúmeras as inspirações e que terão que ver com a sensibilidade estética, artística e gostos do respetivo criador.
E nos figurinos?
Na criação de figurinos o método pode ser muito semelhante, tendo, no entanto, que ter em conta que se está a ser dirigido por um, ou mais criadores, encenadores no caso do teatro, ou coreógrafos na dança, por exemplo. No caso do teatro, por exemplo, há quase sempre um texto que será o ponto de partida, mesmo que o trabalho possa ser levado para uma outra direção do que a sugerida numa primeira leitura. Mas é a leitura que o encenador fará desse texto, o que pretende para o espetáculo, a sua perspetiva, o seu olhar, o que quererá dizer com esse trabalho, que no fundo irá orientar toda a equipa. No caso da dança o processo pode ser muito idêntico, mesmo não havendo sempre um texto ou uma narrativa concreta.
Como aconteceu o afastamento do mundo da moda e das passerelles? Foi uma decisão que tomou ou pura e simplesmente foi acontecendo?
Antes da decisão mais "radical" fiz ainda uma transição na qual não cumpria algumas das regras do mercado, como por exemplo, não fazer desfiles nas semanas de moda oficiais, ou fazer projetos temáticos que me interessavam mais criativamente. No entanto, rapidamente admiti o que já sabia, que não era muito possível ter essa postura. A moda tem regras muito definidas e se não são cumpridas, mais vale ir fazer outra coisa. Esta mudança é maior porque corresponde a ter deixado de produzir, apresentar e comercializar coleções.
E porque é que aconteceu esse afastamento?
Muito por cansaço creio... comecei muito cedo, o panorama da moda mudou muito e neste momento não me revejo no ritmo desenfreado do mercado e nas "regras" que se impuseram, em especial nos últimos anos. Criativamente deixou de fazer grande sentido para mim.
Quando foi a última vez que apresentou uma coleção?
O último desfile foi em 2012 em Maputo. Foi uma bela experiência para "despedida", que nem sabia que iria ser.
Não sente saudades de trabalhar no mundo da moda?
Para já não tenho mesmo saudades. Esta fase, que na verdade já tem mais de quatro anos, tem sido tão intensa e rica que não dá para ter saudades. Nem tenho tempo.
Continua a acompanhar o mundo da moda? Vai a desfiles?
Tenho que confessar que nunca acompanhei muito mas, agora, quase nada mesmo. Vou seguindo algumas poucas coisas através das redes sociais e sites.