Voo de regresso do Arcanjo marcado para 20 de maio

Falta menos de um mês para o público voltar a ver a escultura barroca do Arcanjo São Miguel que em novembro foi derrubada por um visitante do Museu de Arte Antiga.
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Exames radiográficos, estudos estratigráficos da policromia, análise biológica da madeira em vários pontos. Foi por uma bateria de exames feitos pelo Laboratório José de Figueiredo que começou o restauro do Arcanjo São Miguel, a estátua barroca que em novembro passado se tornou na mais popular do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) ao ser derrubada do plinto onde estava em exibição nas galerias de pintura e escultura portuguesa, escassos quatro meses após a sua reabertura.

Ou melhor, a primeira tarefa foi mesmo recolher os diferentes elementos em que se tornou esta escultura com quase dois metros de altura. "À primeira vista parecia que estava desfeita", recorda Maria João Vilhena de Carvalho, conservadora de escultura do museu. A "culpa" desse susto inicial deveu-se às muitas lascas de madeira que saltaram do interior da escultura. "Eram elementos que ficaram dentro da escultura desde que o escultor a esculpiu", explica, enquanto indica as costas do Arcanjo onde se descobre o interior escavado da escultura. Agora estão todas num frasquinho, como aqueles de doce que guardamos lá por casa, em cima de uma mesinha de apoio na pequena sala do museu onde o restauro está em curso.

Passado o susto inicial - "a extensão [dos danos] não foi tão grave como nós tivemos algum receio à partida", confessa Maria João - passou-se ao diagnóstico: "As fraturas foram sobretudo ao nível dos elementos mais soltos do corpo, desde estruturais como os braços, e dos de encaixe, como as asas, parte do manto, as plumas do capacete, que se soltaram com o impacte da queda, com pequenas fraturas em cada um destes elementos", enumera Maria João.

"Depois de recolhidos os diferentes elementos, tentámos perceber qual a extensão dos danos e estamos a tentar perceber como foi construída", explica Conceição Ribeiro, técnica de conservação e restauro, que já trabalhara na limpeza desta escultura antes de ter sido exposta, no verão, no renovado terceiro piso do Museu das Janelas Verdes. "Na altura em que a limpámos, ela estava muito suja, ainda não tinha sido limpa pelo menos nesta geração, do ponto de vista do suporte achámos que não era necessário intervir, porque estava estável, se bem que já houvesse ali uns problemas". E prossegue, partilhando as preocupações que norteiam o seu trabalho: "Hoje, como conservadores-restauradores, fazemos intervenções com prazo no mínimo de 50 anos. Ou seja, uma peça só deve ser tratada, do ponto de vista da intervenção, uma vez em cada geração".

Após o acidente, o cenário alterou-se: "Agora temos de intervir e temos a obrigação de tentar pôr todos os recursos disponíveis (laboratórios, investigadores) à disposição deste trabalho em prol da recuperação de um bem que se danificou". É precisamente isso que se tem passado nos últimos cinco meses: "Temos estado numa fase de análise e agora está-se a proceder à recuperação que é unir todos os elementos [e aponta para as diversas peças soltas que se encontram numa mesa] e tentar voltar a ter outra vez a peça como ela estaria antes, dentro do possível, claro."

Dentro do possível porque, assume Conceição Ribeiro, "não vamos conseguir disfarçar o acidente totalmente. Pelo menos do ponto de vista técnico, tudo aquilo que uma peça vive, fica marcado, uma espécie de cicatriz. E nós conseguimos ver toda essa vivência anterior da escultura". Aproxima-se da estátua, presa por uma correia entre o espigão que tem nas costas e o teto, e aponta: "aqui, na zona de encaixe da perna, verificámos que já havia uma fratura anterior e com o embate acabou por sofrer mais ainda".

Cinco meses depois, e tantos exames realizados, alguma surpresa? "A surpresa foi, do ponto de vista técnico, o artifício que o artista utilizou para criar estabilidade à peça. Isso é uma novidade no nosso panorama de estudo. Poderíamos imaginar que a peça tinha sido esculpida e depois aplicada na nuvem com um espigão. Mas não foi isso que o escultor fez. Para criar estabilidade incorporou mesmo a estátua naquela estrutura", esclarece a técnica, referindo-se à tal nuvem sobre a qual o Arcanjo parece ter o pé esquerdo assente. Na realidade existe uma espécie de espigão de madeira que faz parte do mesmo bloco de madeira em que está esculpido aquele lado da estátua. "A ideia é torná-la o mais leve possível, o que tem também a ver com o discurso estético", acrescenta Conceição Ribeiro. O que, completa Maria João, "tem a ver com as técnicas de composição escultórica, neste caso o contraposto, com o peso concentrado numa das pernas dando uma certa naturalidade à figura, que aqui é muito artificiosamente executado". Resultado: "um levíssimo movimento e um dinamismo esteticamente muito bem conseguido, com muita qualidade. A policromia e o dourado acentuam esses movimentos, criando manchas de sombra e luz. Há aqui um artifício ainda muito barroco que revela um escultor com grande mestria técnica".

Autor está quase identificado

Recusando a ideia de que este restauro possa ser considerado uma mais-valia, por obrigar a um exaustivo estudo da escultura, a técnica de conservação e restauro explica o que já é possível saber sobre esta obra de arte do século XVIII, oriunda do Colégio de São Patrício, em Lisboa (onde hoje está instalado o Chapitô) e que deu entrada no museu em 1922, como atesta o selo dourado que ainda se pode ver na parte de trás de uma das asas. "Através do raio-X, feito pela primeira vez a esta obra, percebemos onde estão as zonas de assemblagem [de junção das diferentes peças que compõem a escultura]". Em resumo, a peça é formada por dois grandes blocos de madeira, como que dividindo o Arcanjo em duas metades, a direita e a esquerda, que são unidas nas costas por caudas de andorinha (entalhes na madeira com este formato), que unem as duas partes do tronco. A estes dois blocos principais, juntam-se então múltiplos elementos, "muitos deles fixos com pregos". A cabeça - "algo habitual em trabalhos desta época", contextualiza Maria João - é formada por dois elementos, a parte da frente e a de trás. A da frente é escavada de forma a serem colocados olhos de vidros - "uma técnica muito vulgar na altura", refere.

"As assemblagens são um artifício muito utilizado no século XVIII e representam a forma como os escultores ultrapassavam a dificuldade em obter uma matéria-prima [tronco] com a dimensão desejada para a peça que tinham de executar. E quanto maior a peça, maior a dificuldade em arranjar a matéria-prima desejada", explica Conceição Ribeiro. Situação que se agrava nas épocas mais recentes, em que a madeira se tornou um bem cada vez mais escasso. "Por isso, neste período se desenvolveu muito a tecnologia de assemblagem", remata.

"Ainda estamos numa fase de análise, ainda nos faltam dados para tirar conclusões", dizem ambas, sem quererem avançar muito sobre o que já apuraram. "Neste momento estamos em crer que é formada por uma série de elementos em madeira resinosa, que deverá ser cedro ou zimbro, dois tipos muito semelhantes". As análises biológicas feitas em vários pontos vão esclarecer o que é feito de quê. Mas isso fica para mais tarde, talvez para quando, a 20 de maio, Dia dos Museus, o Arcanjo São Miguel regressar ao convívio com os visitantes do Museu de Arte Antiga.

Quanto à identidade do escultor, "estamos no bom caminho", diz Maria João. "A investigação tem-nos trazido dados novos e vamos conseguir chegar ao nome do escultor. A oficina está determinada, é aqui de Lisboa, sem dúvida". Mas ainda não quer revelar o nome, ao que Conceição adianta apenas alguns dados do seu perfil: "sabemos que era um artista instruído, com formação, uma boa ancoragem em termos artísticos".

As datações, que resultavam de uma análise histórico artística, acabam por coincidir com os resultados já obtidos pelos vários exames laboratoriais agora feitos. "São mais precisas no sentido em que conseguimos até datar a execução de determinadas intervenções que a escultura foi sofrendo ao longo da sua vida", diz Maria João. Conceição Ribeiro completa: "Já nos tínhamos deparado com todas essas intervenções. Vemos que há aqui colagens feitas anteriormente, não foram feitas por nós. Mesmo esta estrutura metálica [e pega no conjunto de penas que forma o penacho do capacete] estou convencida que é uma intervenção e não original porque é um artifício para fixar melhor toda esta zona. E também há intervenções de cor. Por exemplo, aquela massa que forma as nuvens na base da estátua, já foi policromada. Em determinada altura foi pintada. O que era comum. Como eram peças que estavam ao culto, eram constantemente alvo de cuidados." Por outro lado, "as carnações, em princípio estão de acordo com o original, mas estamos agora à espera dos resultados das análises estratigráficas que nos permitirão ver as várias camadas [de tinta] e se existe uma camada subjacente, quantas existem, o que nos permite ter um olhar mais preciso e microscópico sobre o que estamos a trabalhar."

Outro aspeto: "Houve elementos metálicos que uniam as várias peças que formam a escultura que ficaram deformados com a queda e foram retirados. Também foram para analisar, até para saber se seriam originais ou colocados após intervenções. É como um caso de detetives, digamos".

Regresso ao terceiro andar

Com tantas pecinhas em cima da mesa, estará tudo pronto a 20 de maio? "A estabilização da perna, uma das fases mais delicadas, já está feita, com uma cavilha, depois temos de ver se se faz o preenchimento [das falhas na cor] ou não. Há muitos aspetos do trabalho que podem ser feitos ao longo do tempo. Não temos de os fazer agora. Há a necessidade, isso sim, de expor a peça o mais depressa possível, e temos que a repor com os braços e com as asas como ela tinha. Isso vai ser reposto", explica Conceição Ribeiro. A urgência, explica, deve-se ao facto de não ser aconselhável "a madeira estar muito tempo fora do lugar porque se deforma".

Se o regresso à exposição já tem data marcada, a forma como o Arcanjo São Miguel vai ser mostrado ainda não está completamente definida. O estudo museográfico em curso envolve várias ideias e experiências que não tem só a ver com as conservadoras-restauradoras. "As suas fragilidades vão obrigar a alguns cuidados até porque está mais frágil do que estava antes", salienta Maria João, avançando apenas que a solução pode passar também pelo espigão que a estátua tem nas costas. Adivinha-se um voo até ao terceiro andar.

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