Quem tem medo de Alexandra Lencastre e Diogo Infante
Testam-se luzes e os atores preparam a entrada em cena. A equipa técnica apura pormenores na decoração. A escrivaninha, os livros, os vários cinzeiros e candeeiros, o sofá, as almofadas, o cadeirão. Garrafas de whisky, brandy e gin. A sala de estar de Edward Albee, tal e qual como a imaginou, está a postos para receber Quem Tem Medo de Virginia Woolf, numa noite que se avizinha longa, madrugada sombria que acolhe o jogo e ludibria os sentidos a partir de hoje no Teatro da Trindade, em Lisboa.
O álcool integra o elenco como combustível de um guião denso e provocador escrito em 1962 por Edward Albee, um dos maiores autores da dramaturgia contemporânea, vencedor de três prémios Pulitzer, falecido em setembro passado, em Nova Iorque, aos 88 anos.
Escava, rasga e irrompe, assustadora, num dos thrillers psicológicos mais famosos de sempre, alvo de múltiplas versões e adaptações, a mais célebre protagonizada por Elizabeth Taylor e Richard Burton, no filme de Mike Nichols, vencedor de cinco Óscares, entre os quais o de melhor atriz. A peça que ganhou inúmeros prémios e que se mantém intemporal até aos dias de hoje. Quem Tem Medo de Virginia Woolf, a ladainha entoada em acordes perturbantes agora nas mãos de uma equipa de luxo que recupera o fôlego após duas horas de puro teatro, numa entrega dilacerante "desde a terceira camada de pele ao tutano do osso".
Realidade versus ilusão
Diogo Infante e Alexandra Lencastre são Martha e George, o casal gladiador, que regressa de uma festa na universidade, em que George é professor de História. O pai de Martha apresentara o novo corpo docente, em que está Nick (José Pimentão) acompanhado pela mulher, Honey (Lia Carvalho). Martha convida-os para sua casa, onde o par se torna presa ou o predador, à medida que a noite avança, e o álcool começa a surtir efeito, e se deixa envolver no mundo tumultuoso e perturbador dos anfitriões.
O que começa por ser uma brincadeira, transforma-se num monstruoso duelo psicológico entre George e Martha, com inevitáveis repercussões nos convidados. A noite pertence-lhes, aos quatro, até amanhecer, em que a ruína das almas e dos sonhos é a única que se mantém de pé. Parece não haver sobreviventes no cenário doméstico de um casal de meia-idade armadilhado numa relação doentia. Afinal, quem tem medo de George e Martha?
A seguir ao ensaio, Alexandra Lencastre e Diogo Infante aceitam explicar. "Os atores só precisam de respirar um pouco", pede a produção. Precisamos todos, talvez dizer. Esta é uma peça visceral à qual não é possível ficar indiferente. A fronteira entre o palco e a plateia quase não existe. "É o que se pretende", dirão os protagonistas.
"Esta peça toca em feridas que felizmente não são todas nossas mas que já vimos em alguém. Do meu lado, consigo ter algumas zonas de identificação com Martha, mas tem sido um grande desafio, são personagens que exigem um crescimento muito sólido", diz Alexandra Lencastre. Diogo Infante sustenta. "Talvez os casais não durem 22 anos de vergastadas, hoje as pessoas têm mais alternativas, mas todos nós sabemos que a capacidade para magoar os outros, sobretudo os que mais amamos, continua porque faz parte da natureza humana. Nós tendemos a ferir quem mais amamos, porque o amor e o ódio muitas vezes estão próximos, é por isso que esta peça pode ser representada daqui a 100 anos, não tem data."
O ator, que viu primeiro a peça antes do filme, na altura, desempenhada por Isabel de Castro e Mário Jacques no Teatro da Graça, enquanto estava no Conservatório, ficou abismado com a intensidade do texto e lembra-se de ter pensado que gostava, um dia, de a fazer. E, claro, a dupla Taylor e Burton no cinema "com representações muito marcantes, elevou-a para a estratosfera".
George, juntamente com Martha, personifica a crítica do autor ao chamado modelo perfeito da sociedade americana, com a figura da dona de casa e do chefe de família. "Ela talvez seja o monstro, impulsiva, bruta, sim, que se dá mais à morte, e a passividade que ela tanto critica no marido é uma estratégia, a grande sofisticação, ele é um excelente jogador que aguarda pacientemente para depois lhe tirar o tapete no final", observa Lencastre.
Habituados há décadas aos retalhos de um e outro em palco e fora dele, "esta é uma peça em que a nossa cumplicidade tem de dar lugar à tensão. Eles estão sempre em guerra. E com a Alexandra é difícil porque já nos conhecemos tão bem que há sempre um olhar ou um sorriso que passamos naturalmente um ao outro e temos de ter cuidado", revela o protagonista que assumiu também há um mês a direção da peça, por motivos de saúde de João Perry, de início ao leme da encenação. E se, quer um quer outro, parecem submergir nas personagens de forma tão natural, a sua expectativa em relação ao público é que este seja um trabalho que faça pensar. "Esperamos gargalhadas, desconforto, murros no estômago, de certeza que muita gente vai pensar "Ups!", é esse o papel do teatro, nós só temos de chegar aqui e cumprir a missão", terminam.