"Podia ter sido polícia. Escapa-me muito pouca coisa"

O escritor J. Rentes de Carvalho lançou um novo romance. Intitula-se 'O Meças' e trata da violência humana.
Publicado a
Atualizado a

O romance tem uma nota inicial que avisa: "O Meças é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos, lugares e pessoas, vivas ou falecidas, é simples coincidência." Não acredito nesta nota, diz-se a J. Rentes de Carvalho, que fica surpreendido com a afirmação e responde logo com um "Ah não! Não acredita no meu talento?" E passa ao ataque: "Não encontrará nenhuma descrição real a não ser a da barragem do Sabor - que está lá e ninguém pode tirar - e a do hotel. Mais nada, o resto é tudo ficção."

Não se estava a duvidar, antes a expor a dúvida sobre a fronteira entre a realidade e a ficção neste seu trabalho no que se refere à incontida violência que percorre estas 170 páginas. Um livro que de tão curto e direto é uma verdadeira estalada ao leitor. Um romance em que os capítulos alternam de narrador e cruzam informação crucial para se compreender a natureza humana, que o escritor faz questão de deixar registada de uma forma tão impiedosa que às vezes dá vontade de conhecer o protagonista Meças e pedir-lhe explicações.

J. Rentes de Carvalho gosta de provocações. Tanto que se acomoda no sofá e prepara-se para defender as damas que levam pancada no romance e o estilo machista - ou "impotente" - do protagonista: "O que conto é o filtrar de uma longa sequência de situações, pois tenho uma boa capacidade de observar e nada mais faço na minha vida do que estar atento ao que acontece. Vou picando aqui e além tiques das pessoas, maneiras de ser, frases que dizem e atitudes que têm. Podia ter sido polícia porque escapa-me muito pouco. Este Meças é uma construção de situações, sentimentos e acontecimentos vistos ao longo de um determinado período de tempo. É o amalgamar de muitas situações numa única personagem. É a condição humana."

Para que não fiquem dúvidas, o escritor esclarece: "Não conheço ninguém assim, mas sim muitas pessoas que têm uma boa parte dessa violência dentro de si. Tenho-as visto explodir por questões minúsculas e pergunto-me como é que um sujeito estoura daquela maneira se o motivo é tão diminuto. A resposta é: tem muita raiva acumulada desde que nasceu."

Este romance nasce em 2003, data que J. Rentes de Carvalho reparou ao ver tal data no documento word onde escrevera os primeiros passos do livro que entrega aos leitores 13 anos depois. Após o fim da narrativa, coloca alguns pensamentos que teve durante a escrita do romance: "É uma coisa que não sei explicar como surge, porque estou a escrever a história e sou obrigado a parar por causa do que está no subconsciente. Pequenas explosões de irritação ou desgosto."

Quanto à satisfação sobre este livro, J. Rentes de Carvalho é claro: "A minha ambição é fazer melhor. Envergonho-me de escrever e tenho o sentimento de estar sempre aquém do que deveria fazer. Há criadores que ficam logo satisfeitos mal acabam, e contam a toda a gente a alegria que têm. O [Mikhail] Bulgakov lia todos os dias aos amigos páginas de O Mestre e a Margarita. É preciso ter-se muito em conta para chatear assim os amigos. No meu caso, se fosse pago ao cêntimo por cada palavra que corto da última versão estava rico. E se fosse pago pelo descontentamento que sinto, então ainda ficava mais rico."

Voltamos à estalada ao leitor. Pergunta-se ao escritor se o livro tem 170 páginas para que a reação do leitor seja mais forte? Explica a carpintaria: "O livro no seu estado inicial iria ter trezentas páginas, mas se há coisa que me aborrece como leitor é haver palha no livro. Por isso tirei-a toda e reduzi o enredo e as personagens até ao osso. Não ficou gordura nenhuma, só um pouquinho de carne. Estou-me nas tintas para o facto de ser ou não pequeno, até porque a moda agora é quanto mais espessos são os livros mais sucesso têm. O leitor comum quer ir à livraria e comprar um calhamaço, e eu, de propósito, corto a versão original porque é assim que quero."

Contrapõe-se que a maior parte dos colegas gostam de pôr muita palha, ao que responde: "Cada um faz como quer, mas não tenho paciência para ler muitos deles. Começo, se não me diz nada, largo-o."

Quanto aos autores mais novos? "Há uma diferença de mentalidade, a juventude hoje quer barulho, música e divertimento. É uma maneira de estar na vida, logo verão quando chegarem aos 50 que só têm um vazio na vida", considera.

Chega-se ao fim de O Meças e percebe-se de que o autor não revela tudo ao protagonista, mesmo que o leitor fique de posse desse conhecimento. Explica: "Há da minha parte alguma caridade neste enredo porque se o Meças soubesse toda a sua história, de quem é filho, morria de raiva." Um bom truque literário, diga-se, num romance em que as personagens são gente presa sem algemas: "A mulher em Portugal tem um mau destino porque a sociedade ainda é machista. Dou razão a todas que se revoltam, mesmo que em excesso e que se tornem ridículas.

Leia mais pormenores na edição impressa ou no e-paper do DN

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt