Avental, luvas calçadas e máscara a proteger boca e nariz. "Posso começar?", pergunta Francisca Rodrigues, tentando segurar com firmeza a lata de tinta com que vai testar os seus dotes de graffiter. Do alto dos 101 anos. Mesmo com dificuldade e apoiada por jovens braços, a "avó Francisca", como é conhecido no lar, lá carrega no botão. "Bolas, que é preciso força para esta coisa dar", ia comentando à medida que cobria o molde de uma rosa de tinta vermelha. "Já não vejo quase nada. É como se estivesse muito nevoeiro. Que tal ficou?" A resposta veio lá de trás de quem sabe da arte: "Impecável.".Com mais ou menos arte pelo meio, o momento fica na história do projeto Lata 65, traduzido num workshop dedicado a grupos de idosos. O primeiro teve lugar em novembro de 2012 com utentes do Centro Paroquial de Alcântara, viajando já o Lata a Torres Vedras, Covilhã, Montemor-o-Velho, Castelo Branco, Ponta Delgada (Açores) e São Paulo (Brasil). Agora no Seixal, que incluiu teoria e prática num muro da Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos do Seixal (AURPIS), eis que uma centenária vai grafitar paredes. E logo Francisca, que nem à escola foi, porque era preciso pagar dez tostões - algo como meio cêntimo - mas eram 13 irmãos lá em casa. Começou foi cedo a trabalhar no campo e conhece bem os segredos da cortiça..[amazon:2015/12/lata_65x_20151214144001].Caiar uma casa também conta?."Já tive uma trombose, sabe? Mas faço renda, cozinho, passo a ferro. Desenhos, nunca tinha feito. Nem para a neta nem para a bisneta", confessa. "E nunca pintou a sua casa?", questionamos. "Mas isso conta? Todos os anos caiava a casa. E bem. Ficava sempre tão linda. Se calhar, também era arte e eu nunca soube que era artista", admite ainda de lata em riste apontada ao mesmo muro, onde mais de uma dezena de outros idosos do lar também se esmeram para "brilhar", até ali, no distante mundo da arte urbana..Para trás tinham ficado dois dias teóricos. Uma espécie de formação-relâmpago sobre enquadramento histórico dos graffiti e técnicas, tendo o grupo pegado em x-atos (alguns pela primeira vez) para cortar os próprios moldes em cartolina que iriam usar na execução do mural. Flores, mãos, estrelas e vasos foram as principais opções..No dia de levarem os conhecimentos à prática surgiram na rua como um gangue. De cadeira de rodas, muletas ou abraçados aos assistentes, lá caminharam alinhados até às traseiras do lar, cantando uma moda alentejana, alternada com o chocalhar das latas (já a mentora do Lata 65, a arquiteta portuguesa Lara Seixo Rodrigues, tinha alertado que era preciso ir agitando as tintas para estarem mais diluídas)..O dia sem lanche."O entusiasmo é tanto que até se esqueceram de lanchar. E olhe que o lanche é sagrado", admitia o presidente da AURPIS, José Jesus Silva, enquanto em breves minutos o muro passava de cinzento a totalmente colorido. "Parece magia", exclamava Isabel Apolinário, de 83 anos, que mesmo de cadeira de rodas, devido a problemas de ossos, e falta de visão em 50%, esteve quase uma hora junto ao muro a dar o seu melhor..Mesmo com a espinhosa missão de fazer sair a tinta, perante a falta de força para carregar no botão, ainda fez o seu nome e algumas flores. Tem veia de artista, afinal, o que lhe valia estar entre as alunas preferidas da professora Ivone, em Peniche..Ao lado era uma bisneta que ajudava Conceição Lima, 82 anos, a espalhar estrelas douradas pelo muro. Esta graffiter levou o assunto mais a sério e adotou o nickname de "Negra", inspirada nas raízes angolanas, onde começou a trabalhar como enfermeira no Lobito e Silva Porto, antes de vir para Lisboa. "Trabalhei ao mesmo tempo em São José, Ordem Terceira, Cruz Vermelha e mais dois hospitais. Curei tanta gente e ainda hoje ajudo pessoas. Pintar, é a primeira vez", confessava, tal como Adelina Domingas, 91 anos, de Mértola, com uma vida ligada ao campo. "De guardar ovelhas sei muito, mas de arte, nada. Nunca fui à escola nem sei como funciona", dizia, à medida que lhe saíam uns "rabiscos"..Já Maria Helena Mota, 88 anos, equilibrava-se na muleta para deixar o nome completo gravado no mural. Sobrou-lhe jeito para o desenho dos tempos em que governava a casa a fazer tapetes de Arraiolos. "Era eu que desenhava as barras para depois trabalhar. Às tantas, ficou cá alguma habilidade, não?"