John Carroll Lynch. "Lucky é sobre a iminência da morte"

Lucky é o belíssimo filme do adeus a Harry Dean Stanton, o ator de Paris, Texas que morreu em setembro passado, aos 91 anos. O DN falou com o realizador John Carroll Lynch, aquando da sua passagem por Lisboa no LEFFEST.
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A ideia deste filme focou-se, desde o princípio, sobre Harry Dean Stanton?

Mais do que um filme sobre ele, diria que é um filme inspirado por ele. O que aconteceu foi que os dois argumentistas [Logan Sparks e Drago Sumonja] tinham vontade de trabalhar com o Harry, porque o conheciam há muito tempo. Então surgiram com esta ideia de olhar para ele como uma espécie de guru no deserto. Tudo começou com essa premissa, e depois acrescentaram muita da sua filosofia. A grande dúvida era se o Harry poderia aceitar fazer o filme. E ele aceitou. Eu fui um casamento arranjado mais tarde.

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O que é que mais o preocupou durante a rodagem, em relação ao próprio Harry?

Para além do cansaço físico, eu queria certificar-me de que ele estava mental e emocionalmente apto para o trabalho, como era preciso que estivesse para entrar nesta viagem. Havia dias em que pensava - ao vê-lo naquelas longas caminhadas que fazia - se o título do filme não deveria ser “Lucky ou como torturar Harry Dean Stanton”…

É curioso que tenha realizado um filme com esta dimensão de viagem espiritual, através de uma abordagem realista muito sustentada pelo ateísmo da personagem, Lucky…

O que me agrada no ateísmo do filme é que ele aumenta os riscos para a personagem. O drama é sobre riscos, e eu não consigo pensar num momento mais dramático na vida de uma pessoa do que o escolhido: a iminência da morte. Lucky é muito mais velho do que qualquer pessoa à sua volta, não tem nenhum problema de saúde - apesar de fumar um maço de cigarros por dia - e, no entanto, pode simplesmente morrer da queda que deu na cozinha. Ele não aguarda ressurreição ou reencarnação, limita-se a enfrentar o vazio. E o que tenta fazer é encontrar uma maneira de viver os dias que lhe restam de uma qualquer forma que se pareça com vida, em vez de simplesmente esperar pela morte.

E como surgiu David Lynch neste projeto? Ele que foi amigo e o fã número um de Harry Dean Stanton.

O David foi ideia do Harry. Estávamos à procura de alguém para a personagem do Howard [um homem solitário a quem desaparece o cágado de estimação] e perguntámos-lhe quem poderia encaixar no papel. Ele só disse “que tal o David?” Todos achámos uma excelente ideia, mas não estávamos convencidos de que iríamos conseguir, porque ele estava a meio da pós-produção de Twin Peaks… Mas fizeram-lhe chegar o material, ele gostou e ajustámo-nos aos dias em que podia filmar. Veio tão magnificamente preparado, com a personagem de tal forma assumida naquela desarmante inocência, que a sua interpretação criou uma bela afinidade com a melodia que atravessa o filme… É que também Howard está a enfrentar pela primeira vez o facto de estar sozinho.

Como é que o Harry lidava com os conteúdos biográficos do argumento?

Havia alturas em que o material era tão íntimo que ele ficava pouco confortável e não queria dizer certas coisas. Mas disse-as. Particularmente a história da cotovia que parou de cantar, o momento mais triste da sua infância, é verdadeira e ele já tinha contado algumas vezes… Mas é diferente quando estás a assinar alguma da tua biografia para uma personagem de ficção.

É mais forte do que um documentário.

Muito mais forte. Sabe, a intenção do argumento era criar um filme que se aguentasse por si, independentemente de o espectador conhecer ou não a biografia do Harry. E acho que conseguimos isso, que Lucky vivesse por si, como personagem. Foi muito gratificante para mim quando ele, já depois da rodagem, descreveu a personagem como alguém que o Logan [Sparks, argumentista] concebeu. Achei isso maravilhoso, porque o próprio dizia em muitas entrevistas que durante 40 anos não representou outro que não Harry Dean Stanton. Pensei muito nisto durante todo o processo: a pessoa que Harry criou não é ele, mas uma interessante revelação da sua essência… É como um vinagre balsâmico da sua vida, é muito mais concentrado.

Lucky tem momentos singulares, como aquele em que Harry canta uma canção mexicana. Durante a rodagem houve outros momentos especiais?

Há um momento que me vem de imediato à memória. Era um dia muito quente. Filmámo-lo a andar seis ou sete quilómetros e depois ele sentou-se numa cadeira que estava no meio da rua. Fui ao pé dele e perguntei “quer que lhe traga alguma coisa?”, ele disse que não e acendeu um cigarro. Ficámos ali sentados cerca de 5 minutos em silêncio. Não dissemos nada um ao outro e foi simplesmente maravilhoso.

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