James Rhodes: biografia crua do pianista violado aos 6 anos e salvo pela música

James Rhodes escreveu um livro em que conta a sua vida. Um testemunho devastador que não agrada ao meio da música clássica.
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O pianista James Rhodes nunca tinha vindo a Portugal até este verão, mas de um dia para o outro o nosso país está na sua agenda em força. Primeiro para lançar a autobiografia, Instrumental, e em novembro para dois concertos no CCB e na Casa da Música. James Rhodes, podem perguntar, quem é? Vamos direto ao assunto, é um nome maldito entre o mundo "sério" da música clássica, pois não é o pianista convencional mesmo que o que toca o seja. Basta vê-lo em pessoa e a sua pose denuncia esse jeito. Ou ouvi-lo falar, quando se percebe que as suas palavras deixariam qualquer membro do mundo da música clássica arrepiado, pois o palavrão ferve.

Tudo se confirma ao ler a primeira frase da autobiografia: "A música clássica dá-me tusa." O próprio questiona estas palavras iniciais como não sendo "uma frase de abertura muito promissora", mas como os pianos têm "88 teclas" cabe ali "todo um universo". A biografia tem como subtítulo "A vida depois do inferno da depressão - Memórias de um consagrado pianista". É sobre esse lado da sua vida que a narrativa percorre a maioria das páginas, deixando para o fim uma crítica cerrada ao universo da música clássica profissional. E não é manso nas acusações, tanto que a revista Gramophone recusou-se praticamente a analisar a biografia por a considerar repleta de clichés e meias verdades. Mas não deixa de referir que os horrores que viveu são reais e que por isso a frase "a música salvou a minha vida" é verdade.

Em entrevista no Conservatório de Lisboa, entre instrumentos a serem afinados e miúdos a correrem pelos corredores do edifício, James Rhodes sente-se em casa e aprecia ser fotografado junto ao piano. Quanto à frase inicial da biografia, Rhodes responde entre risadas: "A música clássica tem uma má reputação e diz ser uma forma de arte elevada. Mas não é assim, antes uma música muito espiritual e queria falar dela de forma mais normal, no entanto acredito que seja um início que surpreenda os leitores." Questiona-se a parte da música enquanto arte elevada e responde que é igual às outras músicas: "Depende do gosto de cada um, pode ter momentos de maior profundidade que a música pop, mas tanto Dylan ou os Rolling Stones criaram grandes obras. Irrita-me a segregação que a parece fazer diferente de outras formas de arte."

Poderia dizer-se que este é um livro para a geração Youtube, o que não enerva o pianista: "Porque não? Creio que é uma geração especial que subestimamos ou nem sequer compreendemos. A má reputação que têm não se justifica e vejo isso nos concertos, pois muitos deles estão entre os meus espectadores e são uma plateia interessada e muito aberta a este tipo de música." Quanto à presença da música clássica nas redes sociais, considera que há demasiados "palermas" no meio que impedem a evolução do negócio e afastam público com essa atitude: "É preciso não ignorar a audiência só porque se sentem parte de uma área especial, que não precisa de usar a internet ou fazer vídeos. Isso é uma treta, acho que a música deve manter-se igual mas o negócio não."

A sua atitude de crítica à indústria não lhe gera grandes simpatias, mas garante que se está nas tintas: "A verdade é que toco nas grandes salas onde sonhava fazê-lo e até agora não me conseguiram afastar. O que quero é tocar piano e atingir novos espectadores. Isso exige um diálogo de minutos antes de cada peça que toco e é o que faço." Não abandona o tema da relação com a indústria e solta novo palavrão antes de afirmar: "Estão a perder a força antiga, basta ver que tenho mais seguidores no Twitter do que eles nos seus meios, porque os que querem ouvir esta música desejam outro tipo de aproximações."

O que mais impressiona em Instrumental não tem que ver com a música clássica, mesmo que James Rhodes jure que foi "salvo" por ela. É que o pianista passa a maior parte do livro a contar a sua vida. Assim sabe-se de forma muito crua que não foi normal e não ultrapassa o primeiro capítulo sem o referir: "Passaram quase seis meses que tive alta de um hospital psiquiátrico." E a sua história irrompe com toda a violência, como é o caso de ter sido abusado por um professor, recusando-se a aceitar o que diz ser mais natural nesta situação: a vitimização. Condensa o que lhe aconteceu assim: "Fui usado, fodido, rebaixado, manipulado e violado desde os 6 anos. Repetidas vezes durante anos."

Não se pode deixar de lhe perguntar se os espectadores que assistem aos seus concertos não irão confundir o pianista com o autor da biografia e dispersarem-se enquanto atua: "Não, acho que estão a ouvir o que toco e a minha vida não lhes interessa nessa altura."

Todos estes relatos biográficos são acompanhados de uma história de um compositor famoso, quase sempre com um drama na vida. Schubert teve vida curta e miserável; Beethoven estava emocionalmente em frangalhos; Ravel era assexuado... E onde fica Rhodes depois deste livro? É um pianista ou uma vítima de violação? Não sente dificuldade em optar pela primeira hipótese. Quanto ao leitor, o que lhe fica em certas páginas é um relato difícil de ler, como acontece quando conta as suas experiências de automutilação. A solução é saltar páginas num livro que teve a edição suspensa durante um ano, à espera de uma decisão judicial, pois a ex-mulher foi contra a publicação..

Instrumental

James Rhodes

Editora Alfaguara

335 páginas

PVP: 19,90 euroeuros

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